Desmonte do Estado, Privatização e Desnacionalização do Setor Produtivo Estatal

Ao contrário das ondas anteriores de reformas econômicas ou administrativas vivenciadas pelo país, trata-se agora de uma transformação sem precedentes na história republicana brasileira. Ela se caracteriza por ser, ao mesmo tempo, abrangente (no sentido de que envolve e afeta praticamente todas as grandes e principais áreas de atuação governamental), profunda (no sentido de que promove modificações paradigmáticas, e não apenas paramétricas, nos modos de funcionar das respectivas áreas) e veloz (no sentido de que vem se processando em ritmo tal que setores oposicionistas e mesmo analistas especializados mal conseguem acompanhar o sentido mais geral das mudanças em curso). Essas três características, por sua vez, apenas se explicam pelo contexto e estado de exceção a que estão submetidas as instituições, os poderes, a grande mídia, a política, a economia e a própria sociedade (des)organizada desde o golpe parlamentar-judicial-militar-midiático implementado e mantido no Brasil desde 2016.

É somente em função disso que se pode entender a ousadia (e até aqui, o sucesso relativo) do projeto liberal-fundamentalista em seguir implementando, sem maiores resistências ou desavenças, a sua agenda disruptiva. Em outras palavras, a atual agenda liberal é disruptiva em relação à trajetória histórica brasileira porque não há no projeto liberal-fundamentalista qualquer perspectiva de construção nacional ou de fortalecimento do Estado para este fim. Isto é, não há referências claras ao desenvolvimento da nação como objetivo último de suas reformas, mas tão somente entendimento de que a consolidação e a valorização capitalista de mercados autorregulados poderia engendrar algum tipo de “desenvolvimento”, que em termos do liberalismo econômico em voga significa coisas como maximização das rentabilidades empresariais de curto prazo, crescimento microeconômico eficiente dos empreendimentos etc. Tudo isso, evidentemente, às custas da precarização das condições e relações de trabalho e do rebaixamento das condições de vida e reprodução social da maior parte da população residente no país.

Ora, de diversas maneiras já foi demonstrado que o somatório de empreendimentos empresariais eficientes e rentáveis do ponto de vista microeconômico não é garantia (na verdade, não há evidência empírica alguma) de que engendrarão resultados agregados (mesmo que setoriais) eficazes ou efetivos do ponto de vista macroeconômico, ainda mais se olhados tais resultados sob a ótica dos empregos, rendas e tributos gerados para os demais agentes econômicos envolvidos nesse tipo de regime e processo de acumulação de capital em bases estritamente privadas.
Mesmo assim, para viabilizar tal projeto em sua envergadura, há ao menos sete dimensões a serem destacadas para entender melhor o processo em curso de desmonte do Estado brasileiro e da própria CF-1988. Três delas – a subalternidade externa, a desdemocratização e o assédio institucional – já foram brevemente retratadas nessa sequência de artigos aqui publicados. A sétima e última das dimensões será a da reforma administrativa, que busca:
i) a redução de estruturas, carreiras e cargos no setor público;

ii) a redução de remunerações e do gasto global com pessoal;

iii) a avaliação de desempenho para fins de demissão com objetivos fiscais; e

iv) o cerceamento das formas de organização, financiamento e atuação sindical.

Hoje, e nos próximos dois artigos da mesma série, vamos tratar do desmonte do Estado nacional por meio de três formas de privatização em curso:

i) hoje, a privatização – acompanhada de desnacionalização – do setor produtivo estatal, que vem a ser a mais conhecida e óbvia forma de privatização no mundo;

ii) depois, a privatização das próprias políticas públicas, que se processa tanto por meio da transferência de setores rentáveis – e priorização política – a segmentos da iniciativa privada, tais como vem acontecendo com as áreas da previdência social, saúde, educação em seus três níveis de ensino, saneamento e demais áreas de infraestrutura econômica e social, e até mesmo políticas de meio ambiente e segurança pública; e

iii) por fim, mas não menos importante, a privatização das finanças públicas, fenômeno este também conhecido como financeirização dos fluxos e estoques líquidos da riqueza capitalista, que se processa por meio do Estado através de formas privilegiadas de gestão, alocação e apropriação de recursos por grupos econômicos específicos, tais como bancos, seguradoras, fundos de pensão e demais investidores institucionais.

Privatização e desnacionalização do setor produtivo estatal, tudo acompanhado de reprimarização da estrutura produtiva e da pauta exportadora nacional.

Como dito acima, essa dimensão do desmonte do Estado no Brasil é mais antiga e conhecida: trata-se da privatização do setor produtivo estatal. Foi durante o governo de Fernando Collor que surgiu o Programa Nacional de Desestatização, em 1990, instituído pela Lei Nº 8.031. Na gestão de Fernando Henrique Cardoso, foi criado o Conselho Nacional de Desestatização e ocorreram várias privatizações marcantes, como as da Telebrás e da Vale do Rio Doce que Vargas havia criado em 1942.
Em 1997, foi publicada a Lei Nº 9.491, alterando os procedimentos do Programa Nacional de Desestatização, e criando um marco regulatório para as novas privatizações. Posteriormente, nos governos de Luís Inácio e Dilma Rousseff, houve muitas concessões de rodovias e hidrelétricas, privatização de alguns aeroportos e bancos regionais.

No contexto atual, a principal diferença é que a sanha privatista vem sendo conduzida por meio de privatizações descabidas, realizadas a preços e condições aviltantes, que implicam em:

i) desnacionalização patrimonial e perda de soberania nacional;

ii) perda de densidade e articulação das cadeias produtivas;

iii) desarticulação dos investimentos públicos indutores e multiplicadores dos investimentos privados e do próprio crescimento econômico setorial e agregado; e

iv) enfraquecimento do potencial indutor de inovações estratégicas das estatais junto a segmentos a montante e à jusante das respectivas cadeias produtivas.

De acordo com informações do próprio governo federal, 17 empresas públicas encontravam-se em processo de privatização em meados de 2020, e mais 20 estariam na lista – vide Quadro 1 abaixo. Por ora, apenas bancos públicos e Petrobrás estariam à salvo, embora não dos discursos do ainda Ministro Paulo Guedes. Prova e bom exemplo disso é que, segundo notícia veiculada pelo jornal Correio Braziliense de 24/07/2020 , a atual direção da Petrobrás vendeu três plataformas – a P7 que produz 15.000 barris/dia, a P12 que produz 7.000 barris/dia, e a P15 que produz 3.000 barris/dia, ou seja, produzem juntas 25.000 barris por dia – por míseros US$ 1.450.000, os quais convertidos ao câmbio de R$ 5,22/US$ 1,00 somam apenas R$ 7.569.000, o equivalente a menos de dois dias de receita bruta, já que os 25.000 barris permitem uma receita aproximada de R$ 5.698.250,00/dia, considerado o barril de petróleo ao preço de R$ 227,93 por ocasião da venda das referidas plataformas.

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Deste modo, fica claro, de acordo com Bello, Bercovici e Barreto Lima (2019: pg. 1785), que desde a década de 1990, com as reformas gerencialistas e privatistas do período, que:

“… criaram-se duas áreas distintas de atuação para o Poder Público: de um lado, a Administração Pública centralizada, que formula e planeja as políticas públicas. De outro, os órgãos reguladores (as “agências”), que regulam e fiscalizam a prestação dos serviços públicos. Uma das consequências desta concepção é a defesa de que a única, ou a principal tarefa do Estado, é o controle do funcionamento do mercado. Esta visão está ligada à chamada “teoria da captura”, que entende serem tão ou mais perniciosas que as “falhas de mercado” (market failures), as “falhas de governo” (government failures) provenientes da cooptação do Estado e dos órgãos reguladores para fins privados. No Brasil, esta ideia é particularmente forte no discurso que buscou legitimar a privatização das empresas estatais e a criação das agências.”

Como consequência, teve início um processo duradouro de reconversão da estrutura produtiva nacional, que antes tinha na industrialização o seu centro dinâmico, doravante passava a contar com uma (re)especialização produtiva em torno da exportação de produtos primários ao exterior:

“A demanda da China e do Leste Asiático por produtos agrícolas e florestais, combustíveis fósseis e outras fontes de energia e por minerais industriais estratégicos acarretou a ampliação do investimento estrangeiro nos setores agrícola e minerário e consagrou, com as políticas do “novo extrativismo”, a reprimarização das economias latino-americanas, impedindo a recuperação das políticas industriais abandonadas nos anos 1990. O “novo extrativismo” não passa, assim, de uma nova forma de subordinação da estratégia de desenvolvimento dos países latino-americanos aos fluxos do comércio internacional.”

(Bello, Bercovici e Barreto Lima (2019: pg. 1788).

Por outro lado, desde os anos 2000, particularmente desde a crise internacional de 2008, vem acontecendo um processo de reestatização no mundo, o que reforça o caráter anacrônico do governo brasileiro, sobretudo desde 2016 em diante. Apenas para se ter uma amostra, entre 2000 e 2017, 884 serviços foram reestatizados no mundo, sendo 83% deles desde 2009. A tendência é especialmente forte na Europa, com destaque para Alemanha e França, mas vem acontecendo em cerca de 55 países de todo o mundo, inclusive EUA, em geral associada a reclamações de usuários e dos próprios governos acerca dos preços altos dos serviços e insuficiência de investimentos como algumas das principais causas.

De acordo com matéria publicada pelo UOL , cinco países lideram a lista e os número de reestatizações já registradas em cada um deles são os seguintes:

i) Alemanha: 348;

ii) França: 152;

iii) Estados Unidos: 67;

iv) Reino Unido: 65; e

v) Espanha: 56.

As remunicipalizações e as renacionalizações de empresas vêm acontecendo em setores de serviços essenciais como saneamento, energia e coleta de lixo, algumas das áreas em que a qualidade dos serviços prestados por empresas privadas é notoriamente pior.

No mínimo, são informações para nos fazerem repensar a estratégia nacional de industrialização e de desenvolvimento econômico no século XXI.

Referências Bibliográficas
BELLO, E.; BERCOVICI, G. E BARRETO LIMA, M. M. O Fim das Ilusões Constitucionais de 1988? Rio de Janeiro: Rev. Direito e Práxis, Vol. 10, N.03, 2019, p. 1769-1811.

Imagem: ciranda.net

O Autor agradece a Victória Evellyn C. M. Sousa pelo trabalho de compilação e organização de dados e demais informações presentes neste texto, isentando-a pelos erros e omissões remanescentes.

José Celso Cardoso Jr é Doutor em Economia pelo IE-Unicamp, PHD em Governo e Políticas Públicas pelo IGOP-UAB. Desde 1997 é Técnico de Planejamento e Pesquisa do IPEA e desde 2019 é Presidente da Afipea-Sindical, condição na qual escreve este artigo. As opiniões, erros e omissões são responsabilidade do autor.

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