Em 17/12/2019, o Congresso Nacional aprovou o orçamento federal para 2020, destinando para juros e amortizações da dívida R$1,603 trilhão, ou seja, 45% dos R$3,565 trilhões previstos no OGU. Isso mostra haver um grande comprometimento anual de recursos públicos destinados ao gerenciamento (leia-se: garantia de liquidez e solvabilidade) da dívida pública federal brasileira, com implicações deletérias ao potencial de crescimento econômico e ao atendimento dos direitos sociais no país.
Por isso, hoje falaremos do terceiro tipo de privatização em curso do Estado nacional: a privatização das finanças públicas, fenômeno também conhecido como financeirização dos fluxos e estoques líquidos da riqueza capitalista, que se processa por meio do Estado através de formas privilegiadas de gestão, alocação e apropriação de recursos por grupos econômicos específicos, tais como bancos, seguradoras, fundos de pensão e demais investidores institucionais. Em outras palavras, a privatização das finanças públicas se manifesta por meio da financeirização da Dívida Pública Federal e da sua gestão pelas autoridades monetária (Bacen) e fiscal (STN) do país. Trata-se de processo paulatino e simultâneo, pelo qual se vão consolidando, desde a CF-1988, duas situações antagônicas.
De um lado, normativos constitucionais (tais como as EC 01/1994, EC 10/1996, EC 17/1997, EC 27/2000, EC 56/2007, EC 68/2011, EC 93/2016, EC 95/2016, além das PEC 186 – Emergencial, PEC 187 – Fundos Públicos, PEC 188 – Pacto Federativo, todas editadas em novembro de 2019), como infraconstitucionais (LRF/2000 e vários dispositivos de controle e punição aplicados quase que anualmente por meio das LDO e LOA).
Todos eles primam pelo enrijecimento e criminalização do gasto público real, de natureza orçamentária, justamente aquele que é responsável pelo custeio de todas as despesas correntes, tanto as intermediárias/administrativas, como as finalísticas destinadas à implementação efetiva das políticas públicas federais em todas as áreas de atuação governamental.
De outro lado, tantos outros normativos constitucionais, das quais a EC 95/2016 do teto de gastos e a PEC 187/2019 dos fundos públicos são bastante expressivas, bem como infraconstitucionais, tais como: a Lei nº 9.249/95, a Lei nº 11.803/20 e Lei nº 13.506/2017.
A primeira delas, Lei nº 9.249/95 é responsável por conferir três benesses tributárias aos proprietários da riqueza financeira:
“a) a instituição de isenção integral do IR (alíquota zero) aos dividendos pagos aos acionistas, na contramão do que se faz no resto do mundo; b) a dedução dos juros implícitos sobre capital próprio, como se fossem despesas, com vistas a reduzir a renda tributável; c) a redução do rol de alíquotas do IR, estabelecendo o limite superior em 27,5%, contra a própria legislação pretérita que crescia progressivamente até a faixa dos 40%.” (DELGADO, 2018: pg. 111).
Por sua vez, com relação à Lei nº 11.803/20, Delgado mostra que:
“O serviço de dívida pública não é suscetível à verdadeira apreciação pelo Congresso Nacional, fruto de emenda de redação na Constituinte (art. 166, parágrafo 3º, item b, da CF), que explicitamente autoriza essa isenção; e ainda da confecção de uma conta fechada – Sec. do Tesouro/Banco Central, compulsoriamente incluída no Orçamento da União por autorização da lei específica nº 11.803/2008. São exemplos típicos de uma institucionalidade fiscal-financeira pouco republicana, se comparada aos países do chamado capitalismo organizado, majoritariamente integrantes da OCDE. Essa característica não apenas se mantém no período pós-1988, como também vira uma prática regulamentada pela Lei de Responsabilidade Fiscal (lei complementar nº 101/2000 – art. 8, parágrafo 2), culminando com a EC 95/2016, que não apenas mantém o “serviço de dívida” como estava (já desregulado), mas amplia para toda a despesa financeira os atributos de irresponsabilidade fiscal e ilimitada criação de despesa por iniciativa do alto staff das finanças públicas – Banco Central e Tesouro Nacional.” (DELGADO 2018: pg. 111-112).
Por fim, a Lei nº 13.506/2017 destina-se a blindar o sistema financeiro brasileiro da punição criminal sobre ilícitos financeiros cometidos, tais como evasão de divisas, fraudes e remessas a paraísos fiscais. Dentre as medidas em tramitação no legislativo, vale ainda lembrar do PLP 459/2017, que trata da securitização de créditos tributários e que representa a legalização de um esquema financeiro de tipo fraudulento.
Todos esses regramentos representam a flexibilização sem limite superior e a blindagem do gasto público financeiro, justamente o oposto do tratamento que vem sendo conferido ao gasto primário real do setor público brasileiro.
Em síntese: capitalismo brasileiro (como qualquer outro, aliás!) é altamente dependente da capacidade do Estado em mobilizar e canalizar seus recursos e instrumentos de políticas públicas em favor do processo de acumulação de capital, em bases privadas. A índole liberal (mais que social!) do Estado brasileiro faz com que ele seja, historicamente, mais perfilado a atender os interesses empresariais e do processo de acumulação capitalista, que os interesses diretos e imediatos de sua população, a grande maioria, aliás, ainda hoje distante ou alijada da cidadania efetiva e do desenvolvimento integral.
Prova disso é que por trás da dívida pública e gastos governamentais com juros para a rolagem da dívida, estão credores do Estado que são, em sua maioria, empresas privadas e grandes agentes rentistas, que fazem das finanças públicas uma fonte de acumulação e enriquecimento nem sempre assentado em bases produtivas – vide gráfico 1.
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No gráfico 2, quando se comparam os gastos correntes com juros e os gastos públicos com a previdência social, tem-se, de um lado, processo de acumulação e enriquecimento privado de natureza financeira que pouco contribui para o crescimento real da economia e para a geração de empregos, tributos e renda das famílias. De outro lado, processo de redistribuição real do fundo público que encontra nos trabalhadores e suas famílias o destino dos gastos previdenciários, eles próprios impulsionadores – pelo consumo que são capazes de realizar – do crescimento econômico, da arrecadação tributária e do bem-estar material das pessoas e regiões do país.
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Portanto, ao chamarmos o processo de financeirização da dívida pública (e da sua gestão) de privatização das finanças públicas, queremos com isso chamar atenção para o fato de que, por detrás dos mecanismos econômico-financeiros subjacentes, aparentemente neutros ou simplesmente técnicos, com o que tal fenômeno é costumeiramente apresentado à sociedade, existe na realidade um processo extraordinariamente desigual de apropriação e enriquecimento financeiro. Tal processo favorece apenas determinados segmentos da população, numericamente minoritários em relação ao total e geralmente travestidos de agentes econômicos confiáveis, tais como: bancos comerciais, bancos de investimento, seguradoras, corretoras, fundos de pensão e agentes estrangeiros, os quais são não apenas os maiores operadores desse processo, como também os seus principais beneficiários diretos.
As implicações desse processo são perniciosas para a dinâmica de crescimento econômico, bem como para as condições de reprodução social da população. Posto tratar-se de opção política de política econômica, esse arranjo institucional, que se está consolidando no Brasil, é passível de contestação teórica e empírica, razão pela qual é importante desnudar as suas implicações e apontar alternativas críveis para redesenhar a referida institucionalidade, com vistas à promoção de um desempenho econômico e social mais condizente com o potencial e anseios de crescimento e de inclusão do país.
Referências Bibliográficas
DELGADO, G. C. Finanças públicas sob o enfoque distributivo. In: CARDOSO JR., J. C. (org.). A Constituição Golpeada: 1988-2018 São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2018. 400 p.
Imagem capa: montagem Ciranda.net e sindicario
1- O Autor agradece a Victória Evellyn C. M. Sousa pelo trabalho de compilação e organização de dados e informações presentes neste texto, isentando-a pelos erros e equívocos remanescentes.
2 – No âmbito dos artigos dessa série, que estão a tratar, sequencialmente, das três formas de privatização do Estado nacional, já abordamos os temas da privatização do setor produtivo estatal , e da privatização das próprias políticas públicas
José Celso Cardoso Jr é Doutor em Economia pelo IE-Unicamp, PHD em Governo e Políticas Públicas pelo IGOP-UAB. Desde 1997 é Técnico de Planejamento e Pesquisa do IPEA e desde 2019 é Presidente da Afipea-Sindical, condição na qual escreve este artigo. As opiniões, erros e omissões são responsabilidade do autor.
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