Como dito no artigo anterior desta série, estão em curso no Brasil desde a CF-1988, mas de modo mais abrangente, profundo e veloz desde 2016 com o golpe, e 2019 com a eleição de Bolsonaro, três formas de privatização da coisa pública, a saber:
i) a privatização pura e simples – acompanhada de desnacionalização – do setor produtivo estatal, que vem a ser a mais conhecida e óbvia forma de privatização no mundo (tema este tratado em artigo neste site no dia 09 de agosto de 2020);
ii) a privatização das finanças públicas, fenômeno este também conhecido como financeirização dos fluxos e estoques líquidos da riqueza capitalista, que se processa por meio do Estado através de formas privilegiadas de gestão, alocação e apropriação de recursos por grupos econômicos específicos, tais como bancos, seguradoras, fundos de pensão e demais investidores institucionais (tema que será objeto do próximo artigo desta série neste blog); e
iii) a privatização das próprias políticas públicas, que se processa tanto por meio da transferência de setores rentáveis – e priorização política – a segmentos da iniciativa privada. Este é o tema do artigo de hoje.
A privatização das políticas públicas, aqui abordadas apenas em âmbito federal, não é um fenômeno novo e vem acontecendo de forma silenciosa, quase imperceptível, por meio da introdução de atores e interesses privados, sobretudo em áreas rentáveis para a acumulação de capital e a consolidação de mercados lucrativos em áreas tais como: previdência, trabalho, saúde, assistência, educação, esportes, cultura, segurança, meio ambiente, ciência, tecnologia, inovação, comunicações etc.
Para que se tenha um único e eloquente exemplo disso, veja-se que no caso do SUS a participação privada no financiamento cresceu, mas o volume de produção não. Há muito financiamento público via renúncias fiscais, e há muita desigualdade no acesso.
Em termos regionais, a concentração na oferta de serviços se explica, sobretudo, porque os investimentos seguem a lógica do mercado, sem que o Estado tenha conseguido realizar aportes necessários para reduzir as desigualdades de acesso, particularmente na atenção especializada e na hospitalar, com maior incorporação de tecnologias. Adicionalmente, o Estado tem adotado um modelo de gestão que cede unidades públicas para a gestão privada por meio de contratos cujos valores, formatos e conteúdos têm sido questionados. Nesses espaços de poder e lobby, a relação público-privada tem favorecido os atores com capacidade de pressão, incluindo a população coberta por planos e seguros privados de saúde. Em suma, o SUS trouxe conquistas importantes na redução das desigualdades de acesso aos serviços e cobertura regional, mormente a ampliação do acesso para a população pobre dos primeiros quintis de renda, mas mesmo assim não conseguiu instituir uma lógica pública, universal, gratuita e equitativa que ainda está na base formal do modelo de organização do sistema brasileiro de saúde desde a CF-1988.
A lista de casos e exemplos concretos é imensa e antiga, extrapola o espaço e o escopo desse texto, mas uma tentativa de síntese é apresentada no Quadro abaixo.
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Em resumo, como bem explica Rene Keller (2018: 35):
“Quando o Estado fornece determinado direito por meio das políticas públicas, os usuários acessam os direitos apenas sob a veste de valor de uso. Isto é, quem se gradua em uma instituição de ensino pública acessou o bem “educação” apenas sob a veste do valor de uso, da utilidade que terá para a sua formação por motivos variados, no entanto, sem ser tratado o direito como valor de troca. Por outro lado, quando o acesso a determinado direito ocorre pela via concorrencial privada, o bem é obtido a partir do seu valor de troca, abrindo espaço à acumulação privada de capital sob a esfera dos direitos. Com isso, há um processo em curso de privatização ou mercantilização dos direitos que, com a sua precificação, passam a ser fruídos com base no seu valor de troca. O reflexo dessa equação é que o ditame liberal de garantia dos direitos pela via individual privada exime o Estado do seu fornecimento, mercantilizando um bem que deveria ser alcançado apenas como valor de uso.”
Em complemento, vamos nos ater ao aspecto principal dessa dimensão do desmonte do Estado no Brasil, que vem a ser o que Bercovici e Massonetto (2006) chamam de constituição dirigente invertida:
“Ou seja, a constituição dirigente das políticas públicas e dos direitos sociais é entendida como prejudicial aos interesses do país, causadora última das crises econômicas, do déficit público e da “ingovernabilidade. A constituição dirigente invertida, isto é, a constituição dirigente das políticas neoliberais de ajuste fiscal é vista como algo positivo para a credibilidade e a confiança do país junto ao sistema financeiro internacional. Esta, a constituição dirigente invertida, é a verdadeira constituição dirigente, que vincula toda a política do Estado brasileiro à tutela estatal da renda financeira do capital, à garantia da acumulação de riqueza privada.”
Por meio desse processo de inversão do espírito, princípios e diretrizes originais da CF-1988, opera-se um conjunto de alterações constitucionais, por meio de emendas formais, e também por meio de reinterpretações do texto constituinte, que juntas, desfiguram a Constituição e permitem a privatização por dentro de políticas públicas que, em essência, deveriam seguir o rumo da universalidade, integralidade, gratuidade etc…
Referências Bibliográficas
BELLO, E.; BERCOVICI, G. E BARRETO LIMA, M. M. O Fim das Ilusões Constitucionais de 1988? Rio de Janeiro: Rev. Direito e Práxis, Vol. 10, N.03, 2019, p. 1769-1811.
CARDOSO JR., J. C. Planejamento para Céticos: evidências históricas e teóricas no Brasil. São Paulo: Ed. Quanta, 2020.
KELLER, R. J. Direito, Estado e Relações Econômicas: a mercantilização jurídica como forma de priva(tiza)ção do direito à cidade. In: BELLO, Enzo; KELLER, Rene José (orgs.). Curso de Direito à Cidade: Teoria e Prática. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018.
Imagem: Ciranda.net
1- Nota Metodológica: Para o estudo das transformações ocorridas na Administração Pública Federal, organizamos os programas temáticos do PPA 2012-2015 em 4 grandes áreas de políticas públicas, que podem ser desdobradas em 10 áreas programáticas da atuação estatal recente; ou em até 65 programas temáticos do PPA 2012-2015. Ou seja: i) 4 grandes áreas de políticas públicas: Políticas Sociais; Políticas de Soberania, Território e Defesa; Políticas de Infraestrutura e Políticas de Desenvolvimento Produtivo e Ambiental); ii) 10 áreas programáticas: Seguridade Social Ampliada; Direitos Humanos e Segurança Pública; Educação, Esportes e Cultura; Soberania e Território; Política Econômica e Gestão Pública; Planejamento Urbano, Habitação, Saneamento e Usos do Solo; Energia e Comunicações e Mobilidade Urbana e Transporte; iii) 65 programas temáticos do PPA 2012-2015.
O Autor agradece a Victória Evellyn C. M. Sousa pelo trabalho de compilação e organização de dados e demais informações presentes neste texto, isentando-a pelos erros e omissões remanescentes.
José Celso Cardoso Jr é Doutor em Economia pelo IE-Unicamp, PHD em Governo e Políticas Públicas pelo IGOP-UAB. Desde 1997 é Técnico de Planejamento e Pesquisa do IPEA e desde 2019 é Presidente da Afipea-Sindical, condição na qual escreve este artigo. As opiniões, erros e omissões são responsabilidade do autor.
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José Celso Cardoso Jr.