Desmonte do Estado e Subalternidade Externa

Como anunciado anteriormente, há ao menos sete dimensões a serem destacadas para entender melhor o processo em curso de desmonte do Estado brasileiro e da própria CF-1988, a saber: 1. Subalternidade Externa; 2. Inversão e Reversão do Estado Democrático de Direito; 3. Privatização do Setor Produtivo Estatal; 4. Privatização de Políticas Públicas Rentáveis; 5. Privatização das Finanças Públicas; 6. Assédio Institucional no Setor Público; 7. Reforma Administrativa: a) redução de estruturas, carreiras e cargos, b) redução de remunerações e do gasto global com pessoal, c) avaliação de desempenho para demissão, e d) cerceamento das formas de organização, financiamento e atuação sindical.
Todos esses aspectos serão tratados, um a um, aqui nessa coluna, com dados e argumentos que as fundamentam e que, esperamos, possam instigar a reflexão crítica e a ação coletiva em direção contrária ao desmonte do Estado brasileiro.

A Subalternidade Externa: ou como o Brasil se tornou a piada do mundo.

Essa dimensão do desmonte do Estado no Brasil está relacionada ao processo recente de subalternização externa, que engloba tanto o aumento da vulnerabilidade econômica (e agora também militar) externa, como o reforço da dependência política internacional, sobretudo frente aos EUA. Este país, tido como aliado de primeira hora do governo Bolsonaro∕Guedes, é na verdade o principal avalista responsável pela nova guinada à direita no continente latino-americano e, com isso, reconduzido à posição hierárquica superior e dominante relativamente ao Brasil e demais integrantes do continente.

A ideia de soberania nacional é trocada pela ideia de acordos bilaterais de natureza predominantemente econômica. Esse processo, que poderia ser chamado de “renúncia de soberania”, implica em perda de protagonismo e de autonomia no plano internacional, reduzindo a atuação do Estado brasileiro a um patamar quase que meramente comercial e financeiro. Por este caminho, trata-se tão somente de identificar e viabilizar negócios rentáveis entre capitais privados nacionais e estrangeiros, sem maiores preocupações com estratégias de internacionalização ou com a geopolítica do entorno estratégico brasileiro, redundando daí grande perda de status e de poder no plano internacional.

Importante alerta sobre a subalternidade externa foi proferido em artigo publicado no jornal Folha de São Paulo em 08 de maio de 2020, de autoria de Fernando Henrique Cardoso, ex-presidente da República e ex-ministro das Relações Exteriores; Aloysio Nunes Ferreira, Celso Amorim, Celso Lafer, Francisco Rezek e José Serra, ex-ministros das Relações Exteriores; Rubens Ricupero, ex-ministro da Fazenda, do Meio Ambiente e ex-embaixador do Brasil em Washington; e Hussein Kalout, ex-secretário especial de Assuntos Estratégicos da Presidência. Nele, afirmam os autores que:

“É suficiente cotejar os ditames da Constituição com as ações da política externa para verificar que a diplomacia atual contraria esses princípios na letra e no espírito. Não se pode conciliar independência nacional com a subordinação a um governo estrangeiro cujo confessado programa político é a promoção do seu interesse acima de qualquer outra consideração.”
(…) “Outros exemplos de contradição com os dispositivos da Constituição consistem no apoio a medidas coercitivas em países vizinhos, violando os princípios de autodeterminação e não-intervenção; o voto na ONU pela aplicação de embargo unilateral em desrespeito às normas do direito internacional, à igualdade dos Estados e à solução pacífica dos conflitos; o endosso ao uso da força contra Estados soberanos sem autorização do Conselho de Segurança da ONU; a aprovação oficial de assassinato político e o voto contra resoluções no Conselho de Direitos Humanos em Genebra de condenação de violação desses direitos; a defesa da política de negação aos povos autóctones dos direitos que lhes são garantidos na Constituição, o desapreço por questões como a discriminação por motivo de raça e de gênero. Além de transgredir a Constituição Federal, a atual orientação impõe ao país custos de difícil reparação, como o desmoronamento da credibilidade externa, perdas de mercados e fuga de investimentos.”
(…) “A reconstrução da política exterior brasileira é urgente e indispensável. Deixando para trás essa página vergonhosa de subserviência e irracionalidade, voltemos a colocar no centro da ação diplomática a defesa da independência, soberania, da dignidade e dos interesses nacionais, de todos aqueles valores, como a solidariedade e a busca do diálogo, que a diplomacia ajudou a construir como patrimônio e motivo de orgulho do povo brasileiro.”

Outros muitos casos são eloquentes acerca do crescimento exponencial da subalternidade externa brasileira, sobretudo desde 2019, alguns dos quais apresentamos resumidamente no quadro abaixo.

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Inserção internacional soberana e macroeconomia para o desenvolvimento.

Esta situação reverte processo de ascensão econômica e de projeção geopolítica internacional que o Brasil vinha conquistando, sobretudo entre 2003 e 2013, com base em uma política externa ativa e altiva, nas palavras do ex-Ministro Celso Amorim.
Trata-se, portanto, de fenômeno particularmente preocupante – daí falarmos da subalternidade externa como dimensão do desmonte do Estado – porque em contexto de crescente internacionalização dos fluxos de capitais, bens, serviços, pessoas, símbolos e ideias pelo mundo, está colocada para as nações a questão dos espaços possíveis e adequados de soberania (econômica, política, militar, cultural etc.) em suas respectivas inserções e relações externas.

O tema é especialmente caro a qualquer projeto de desenvolvimento que se pretenda ou se vislumbre para o Brasil, devido a, entre outras coisas, suas dimensões territorial e populacional, riquezas naturais estratégicas, posição geopolítica e econômica na América Latina e pretensões recentes em âmbito global.

Esta importante dimensão de análise está, portanto, ordenada sob o entendimento de que o movimento das forças de mercado por si só não é capaz de levar economias capitalistas a situações socialmente ótimas de emprego, geração e distribuição de renda. Ademais, em economias em desenvolvimento, como a brasileira, emergem problemas como altos patamares de desemprego e de precarização do trabalho, heterogeneidade estrutural, degradação ambiental, inflação e vulnerabilidade externa. Daí que o pleno emprego dos fatores produtivos (como a terra, o capital, o trabalho e o conhecimento) converte-se em interesse e objetivo coletivo, apenas possível por um manejo de políticas públicas que articule virtuosamente os diversos atores sociais em torno de projetos de desenvolvimento includentes, sustentáveis e soberanos.

Sob tal perspectiva, uma nação, para entrar em rota sustentada de desenvolvimento, deve, necessariamente, dispor de autonomia para decidir acerca de suas políticas internas, inclusive daquelas que envolvem o relacionamento com outros países e povos do mundo. Para tanto, é necessário buscar independência e mobilidade econômica, financeira, política e cultural, sendo capaz de fazer e refazer trajetórias, visando reverter processos (antigos e atuais) de inserção subordinada para, assim, desenhar sua própria história.

referências do quadro elaboração própria José Celso Cardoso Jr.
1 – 17.1.2019 – Cíntia Alves – Agronegócio |
2 – 16.04.2020 – Equipe Comex do Brasil – Reprimarização da Pauta Exportadora |
3 – 01.06.2020- Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial (IEDI) – Reprimarização da Pauta Exportadora e Redução dos Parceiros Comerciais | Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial (IEDI) – Reprimarização da Pauta Exportadora e Redução dos Parceiros Comerciais
4 – 02.06.2020 – Mariana Ribeiro – Reprimarização da Pauta Exportadora e Redução dos Parceiros Comerciais
5 – 02.06.2020 – Remi Lehmann – Reprimarização da Pauta Exportadora e Redução dos Parceiros Comerciais
6 – 03.06.2020 – Redação Reuters – Reprimarização da Pauta Exportadora e Redução dos Parceiros Comerciais
7 – 15.01.2020 – OCDE
8 – 01.06.2020 – Assis Moreira – Rebaixamento brasileiro na governança global
9 – 25.05.2020 – AFP – Fechamento de Fronteiras do Ururguai e Colômbia a Brasileiros
10 – 24.05.2020 – Jorge Vasconcellos – Fechamento de Fronteiras dos EUA a Brasileiros
11 – 08.08.2019 – João Soares, Felipe Salgado – Base de Alcântara
12 – 26.10.2019 – Rafael Tatemoto – Base de Alcântara
13 – 07.03.2020 – Marcelo Zero – Setores Estratégicos da Defesa Nacional
14 – 02.01.2020 – Nathalia Passarinho – Alinhamento Político-Ideológico aos EUA
15 – 26.12.2019 – Luiz Henrique Campos – Alinhamento Militar e Político-Ideológico aos EUA
16 . 30.07.2019 – Franco Machado – Alinhamento Militar e Político-Ideológico aos EUA
17 . 20.03.2019 – Eduardo Maretti – Alinhamento Militar aos EUA (aliado extra-OTAN)
18. 30.11.2018 – Redação Brasil247 – Alinhamento Político-Ideológico aos EUA
19.05.06.2020 – Redação Brasil247 -Alinhamento Político-Ideológico aos EUA
20. 18.03.2019 – Guilherme Mazui – Não Reciprocidade Externa

imagem: ciranda.net

José Celso Cardoso Jr é Doutor em Economia pelo IE-Unicamp, PHD em Governo e Políticas Públicas pelo IGOP-UAB. Desde 1997 é Técnico de Planejamento e Pesquisa do IPEA e desde 2019 é Presidente da Afipea-Sindical, condição na qual escreve este artigo. As opiniões, erros e omissões são responsabilidade do autor.

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