Desculpe

Dias estranhos da centoecinquentena. Sons distintos da normalidade, seja lá o que isso signifique. Um axé ao longe, o som de uma moto com escapamento modificado. Um carro ou outro, bem mais raros do que sempre. Alguém estuda flauta. Há um choro de mulher. A padaria fecha mais cedo. O futebol voltou pelo rádio e TV. Há muito mais gente pensando. Quase ninguém conhece os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS). Mais gente confusa e o governo é fascista. (sem preciosismos no conceito, por favor)

Nesse horizonte há muita gente para as quais a pandemia mudou pouco seu cotidiano. Para outros, mudou completamente. Poucos de nós continuamos a não sair de casa e compramos o que desejamos por aplicativos ou telefone. Outro grupinho está atravessando este período em sua casa de veraneio. Mas a maioria tem que trabalhar como se não houvesse o amanhã.

Continuamos temendo o contato com os vírus nos ambientes de risco como no transporte coletivo, no próprio local de trabalho (seja na rua, no veículo, na oficina, na fábrica, na casa dos outros, na obra ou na roça) e nos lugares onde nos abastecemos de insumos básicos para sobrevivermos. Lavar as mãos toda hora, álcool gel toda hora, tirar os sapatos antes de entrar em casa, tomar banho e trocar de roupa, invariavelmente. Medo na hora de ajeitar a máscara, medo na hora de retirá-la pra comer fora de casa, medo de ser contaminado e, principalmente, de contaminar quem amamos.

Outros de nós já não ligamos muito, talvez tenhamos menos a perder, talvez nos sintamos invulneráveis por não sermos idosos, por não termos comorbidades, ou por sermos e termos tudo isso e estarmos bloqueados por nossas próprias limitações, que podem ser de toda ordem. Algo semelhante à anestesia geral da sociedade em relação à revolução necessária para enfrentar as questões associadas às mudanças climáticas. É chato, mas é necessário bater na mesma tecla um milhão de vezes. Sem moralismo, ou falso moralismo, é preciso que se dê um jeito de isso acontecer de dentro pra fora.

Drummond não anima em sua poesia Mudança (O Corpo, 1984):

O que muda na mudança,
se tudo em volta é uma dança
no trajeto da esperança,
junto ao que nunca se alcança?

Não importa, a vida tem que seguir de alguma forma, embora a morte esteja rondando, desculpe. O vizinho do 601 perdeu sua mãe que estava com Alzheimer, mas que era amada do mesmo jeito. O avô da namorada do meu sobrinho foi para o mesmo caminho (caminho?);o amigo perdeu o padrasto. Infelizmente, seria possível fazer uma lista das pessoas próximas que estão em hospitais, UTIs etc.

Da mesma forma, já morrem milhares por efeitos do aquecimento global, embora esse tipo de listas fúnebres ainda não estejam disponíveis. Há um indicador impressionante sobre refugiados climáticos. Segundo o relatório do Conselho da Noruega para os Refugiados (NRC) citado por Luiz Marques, 2018, nos anos 70,o deslocamento forçado por desastres chamados “naturais” atingiu 10 milhões de pessoas. Entre 2008 e 2013, esses desastres provocaram o deslocamento forçado de 27,5 milhões de pessoas por ano, em média. Inundações, excesso de calor, excesso de frio, redução de alimentos, doenças respiratórias e de veiculação hídrica, tempestades, rompimento de encostas e tantas outras causas vêm sacrificando muito mais gente, além de outros componentes da natureza, como nós.

Tudo isso exige dedicação especial para refletir sobre tais dilemas, impasse civilizatório. A morte está rondando, desculpe. Só nos cabe a transição ecológica que sinalize outro modelo de desenvolvimento, uma redução drástica no padrão de consumo dos de cima, o fim dos ataques contra a natureza, contra nós mesmos, uma revolução democrática que mude completamente a humanidade. Nossa humanidade.

Nós…

José Augusto Tosato
18/08/2020

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