Era uma nova peste. Nunca se poderia imaginar que o século XXI testemunharia tal subjugação do homem à natureza. O mundo todo já ultrapassava a marca de 100 mil mortes em decorrência da doença.
O vírus propagava-se pelo ar e tinha uma capacidade reprodutiva nunca antes verificada. Os sintomas tampouco se assemelhavam aos das doenças então conhecidas: começavam com uma sede e fome vorazes, evoluindo para edema de glote e morte por sufocamento, tendo todo o processo infeccioso, do contágio até o óbito, não mais que um dia.
Por isso a quarentena consistia em rigorosa reclusão social, incluindo bloqueios de estradas e aeroportos, restrições a transportes coletivos, fechamento do comércio e paralisação de todo trabalho presencial.
Logo ao final da segunda semana, a vizinhança de um bairro central da cidade surpreendeu-se ao escutar música alta vinda todas as noites do Próspero’ Studio & Bar, que funcionava como estúdio de produção musical e sonoplastia em horário comercial e bar aos fins de semana.
O proprietário era um solteirão robusto, barbudo e cabeludo, com tatuagens e metais espetados pelo corpo, bandana, jaqueta de couro, que entretanto não reconhecia qualquer filiação ideológica a Woodstock ou maio de 68. Bem ao contrário, ostentava um ego viril nas redes sociais empunhando uma carabina diante do lema “Sou de Direita, e daí?”.
Talhado aos moldes espartanos pelo pai, um afortunado da indústria farmacêutica nos anos 70 que professava a desnecessidade de atendimento hospitalar de qualquer espécie a mulheres que já tivessem ultrapassado a idade reprodutiva, Próspero replicava na atualidade o desprezo às recomendações sanitárias, já que a pandemia atingia majoritariamente idosos. Na intimidade das madrugadas, seus congregados o escutavam declarar sem pudor: “O problema é que o ser humano insiste em contrariar a natureza e impedi-la de seguir seu curso. A falência do sistema previdenciário no mundo todo deve-se a essa moral assistencialista hipócrita, que protege inutilmente tantas vidas sem função! Parasitas comunistas, acham que dinheiro dá em árvore!”
Uma consequência inevitável da reclusão prescrita pelas autoridades foi a decadência do comércio e da economia de mercado. As atividades técnicas de Próspero’ Studio não ficaram imunes a isso; então, para compensar as perdas, o movimento do Bar deveria ser incrementado. Esta foi sua estratégia.
A casa tinha três andares e um terraço de cobertura. Cada sala de gravação era preparada para vedação acústica com paredes de feltro nas cores da bandeira nacional e decoradas com banners, dentre os quais um dizia: #nazistaeoseucu #soupatriota.
As festividades da quarentena – assim chamadas nas páginas da internet – deveriam ter lugar no terraço, com música ao vivo tocada por bandas poderosamente equipadas para shows em estádios e arenas, garantindo que muitos quarteirões fossem contemplados com a demonstração de coragem e superioridade de seus convivas.
A agenda consistia em noites temáticas: uma noite de rock’n’roll, outra de country music, depois heavy metal, pop, sertanejo, tudo que agradasse à clientela vinda de toda a cidade, parte da qual se julgava super resistente e desconsiderava eventual transmissão assintomática, outro tanto que reputava fictícia a doença, tal qual o homem ter pisado a lua e fotografado a Earthrise.
A grande noite foi reservada para o sábado: um maravilhoso baile de máscaras ao estilo medieval. Seria uma rave com início marcado para onze da noite e sem hora para acabar. Os homens deveriam comparecer trajados de Cruzados e as mulheres como damas da corte.
Começaram a chegar os mascarados, eles com túnicas bordadas, cotas de malhas, capuzes e chifres; elas de veludo, decotes, broches e véus. Os convidados subiam pelas escadas, admirando suas fantasias e tirando selfs.
Em todos os andares havia um bar com sistema de comandas e espaço para dança, mas a maioria dos participantes preferia o terraço superior, que era aberto. Ali, quando a música tocava, eles cantavam junto, aplaudiam, riam e gritavam em êxtase e provocação, enquanto os demais mortais da redondeza, deixando-se oscilar entre o medo e o tédio, já tinham esquecido o tom da própria voz.
Juntaram-se dezenas deles abaixo do céu estrelado a ali se entregaram ao transe da música, bebidas, drogas, danças, quadrilhas, abraços e beijos.
Próspero, vaidoso, esgueirava-se para recantos aconchegantes com grupos pequenos, onde tinha fugazes enlaces sensuais e em seguida saía novamente, para supervisionar o andamento do festim.
Foi-se a primeira hora e se aproximava a meia-noite.
Próspero estava numa pequena cabine de gravação com uma mulher e um casal, quando escutou toques longínquos vindos da campainha no andar térreo. Eram enérgicos, sustentados e pausados, misturados à música e às vozes dos mascarados que pulavam, giravam e se sacudiam no terraço.
O anfitrião enfim acordou de sua letargia:
– Quem não sabe que a casa de Próspero está sempre aberta? Desafia nossa confraternização?
– Pode ser algum delivery… – disse o outro homem.
– Que improvável – riu-se Próspero.
– Ou a polícia! – zombou uma das mulheres.
Doze toques. E então todo ruído parou. A música foi desligada.
Próspero saiu da cabine e, ao começar a descer as escadas, foi atropelado pela turba que descia correndo e se acotovelando como se fugissem de um incêndio.
Ele seguiu a corte mascarada que se dirigiu à entrada do salão principal. De fora da grande porta de madeira fechada gritou uma voz masculina:
– Entrega de comida!
– Fui eu que pedi! – gritou um dos fantasiados.
– É meu, eu pedi! – gritaram outros, avolumando-se à porta, que entretanto estava fechada…
– Por que esta porta não está aberta?! – reclamou Próspero, virando a chave, porém a porta não cedia.
– Está trancada por fora com cadeado – informou o entregador, em voz alta.
Então os convivas começaram a procurar as janelas, que também não abriam. E, vendo-se presos, pularam para dentro dos bares dos quatro andares, abrindo geladeiras, armários, fornos, numa desesperada procura por qualquer coisa que se pudesse comer, derrubando-se uns aos outros no chão e se pisoteando, sem olhar para o lado, pois aquela fome não deixava lugar nem mesmo para o medo.
(Tributo a Edgar Allan Poe e Luis Buñuel)
Imagem: Ana Aly
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