IHU On-Line – O que provocou a ida das eleições ao segundo turno de Lula e Geraldo Alckmin?
João Pedro Stédile – Há muitos fatores que influenciaram. E na luta política é muito difícil determinar qual deles teve maior influência. Nas avaliações do MST e dos movimentos, temos analisado de que as causas principais foram: uma campanha completamente despolitizada, sem debate de projetos e sem envolvimento dos verdadeiros interesses de classe. Um estilo de campanha que não mobilizou a militância, de nenhum lado. E na última semana, tivemos os episódios da tentativa de compra do dossiê, a divulgação das fotos do dinheiro e a recusa do Lula ir ao debate da Globo. Esses fatos, provocaram a direita, e levaram a buscar uma unidade entre eles e os motivaram a se unificar. Para isso, a direita centralizou todas as suas forças, seja pelo dinheiro, pelo poder econômico, seja, e sobretudo, pelo poder que tem nos meios de comunicação de massa que possue quase monopólio. Impressionante a atuação centralizada, vergonhosa, preconceituosa, manipuladora que tiveram os jornais, as revistas e as redes de televisão contra a candidatura Lula. E com isso, conseguiram levar a eleição para o segundo turno a nível nacional. E conseguiram levar diversos candidatos direitistas para disputa do segundo turno também nos estados, como no Rio Grande do Sul, Paraná, Pará, Pernambuco, e Maranhão.
IHU On-Line – O MST liberou seus militantes para fazer campanha para Lula ou não vai formalizar o apoio ao PT?
João Pedro Stédile – O MST é um movimento social que não atua de forma centralizada, nós construimos nossa unidade em torno de linhas políticas e de doutrinas. Cada militante e cada agrupamento do MST atua com completa autonomia, de como aplicar as linhas políticas. Nosso movimento procura preservar a autonomia em relação a partidos, governos, igrejas e Estado.
O que aconteceu depois do primeiro turno, é que a militância do MST, dos movimentos sociais, e das forças populares em geral, nos damos conta do perigo de uma possível vitória do Alckmin, e do que isso representaria em termos de retrocesso e da consolidação do neoliberalismo. Então, naturalmente a militância começou a debater. E foi construido um certo consenso, de que nessa hora, cada um, como militante deveria arregaçar as mangas e ir para a rua, para transformar o segundo turno, num debate de idéias, de projetos, fazer das eleições um batalha de idéias e de classe. Aliás, era isso que queríamos desde o inicio da campanha. Mas a forma como a coordenação da campanha Lula atuou impediu esse debate.
Veja que mesmo a campanha da Heloisa Helena, não teve debate de idéias, de projetos, e ela caiu na cantilena da imprensa burguesa e fez o mesmo jogo, de apenas fazer criticas a corrupção e críticas pessoais ao Lula.
IHU On-Line – Caso Alckmin seja eleito, o senhor imagina que haja uma repressão maior contra o MST?
João Pedro Stédile – Uma vitória do Alckmin seria uma vitória da classe burguesa aliada aos interesses do capital internacional que querem consolidar o projeto neoliberal para nosso país. Seria uma desgraça para um futuro projeto de desenvolvimento nacional e sobretudo para os interesses do povo brasileiro. E certamente, essas forças reacionárias usariam com mais contundência todo seu poder de Estado, representado pelas leis, pelo judiciário, pela imprensa em geral, e pela polícia, para conter as mobilizações de massa, em torno dos direitos dos trabalhadores.
Ou seja, a sua vitória, representaria uma derrota da classe trabalhadora como um todo e aumentaria o tempo desse período adverso para a classe trabalhadora pela ausência do reascenso do movimento de massas. Tardaria ainda mais o tempo para o reascenso. Muitos setores da esquerda mais radical estão iludidos com a defesa do voto nulo, afirmando que o governo Lula não mudou muito. É verdade que na política econômica não mudou.
Houve mudanças na política internacional. E com Alckmin seria recolocar o Brasil na esfera de hegemonia do governo Bush. Mudou a política repressiva do governo federal frente aos movimentos sociais. E sempre que os movimentos dos trqabalhadores encontram condições adversas para se organizar, para debater suas idéias, mais difícil é o acumulo de forças e a construção de suas influencias sobre toda sociedade.
IHU On-Line – O senhor acredita na política brasileira e numa real política de reforma agrária?
João Pedro Stédile – A política brasileira, da chamada representação burguesa, da democracia formal, do parlamento e de apenas votar , está em crise. O povo não acredita, não dá bola para os políticos, que não têm nenhum crédito perante o povo. Portanto, esperamos que nos próximos anos, hajam mudanças reais na forma de fazer política no Brasil. Criando novos mecanismos de participação popular, implementando assembléias e conselhos populares, orçamento participativos, plebiscitos, referendos, fidelidade partidária e o direito do povo revogar mandatos.
Há uma série de propostas que os movimentos sociais e as entidades da sociedade estão debatendo. O problema é que não basta ter boas propostas, é necessário aglutinarmos forças populares, pressão de massa, para conseguir mudanças na forma de funcionar a política no Brasil.
E em relação à reforma agrária, nós estamos enfrentando um dilema semelhante. As elites, a burguesia e a política econômica neoliberal têm como proposta organizar a agricultura brasileira baseada no modelo do Agronegócio. O agronegócio não é apenas uma palavra ou um conceito. Ele é um modelo de organização do uso da terra e da produção agrícola no país. Ele defende a organização em grandes fazendas, para ter ganho de escala, e aumentar os seus lucros. Defende a monocultura com produtos dedicados apenas a exportação e o uso intensivo de máquinas. O agronegócio expulsa mão-de-obra do campo e usa intensivamente agrotóxicos que são agressivos ao meio ambiente e a biodiversidade. Ora, esse modelo é um contra-senso, ele é contrário aos interesses do povo em geral e dos camponeses em particular, que querem usar a terra e a agricultura como um espaço para produzir alimentos, saudáveis e baratos. Queremos criar as condições para que todos tenham vida digna no campo, sem precisar migrar. E a reforma agrária é uma política para consolidar, multiplicar e aplicar esse segundo modelo. Um modelo baseado na soberania alimentar, na fixação do homem no campo e na democratização do uso da terra e dos bens da natureza.
Bem, para conseguirmos derrotar o neoliberalismo no campo e acelerar a reforma agrária, agora não basta mais apenas ocupar latifúndios, que certamente continuaremos a fazer. Precisamos atacar e mudar o modelo econômico e derrotar os que dele se beneficiam, ou seja, a grande propriedade latifundiária e seus aliados, as empresas transnacionais, que controlam a produção, os preços e o comercio internacional da maior parte dos produtos agrícolas brasileiros.
IHU On-Line – Caso Lula seja reeleito o MST vai tentar uma aproximação com o PT para conversar sobre a política econômica do governo e o processo de reforma agrária?
João Pedro Stédile – Nosso caso não é de aproximação ou reaproximação. Sempre tivemos autonomia, nos dois sentidos. Mesmo tendo alguns dirigentes filiados ao PT, nunca o PT, se propôs a dar a linha para os movimentos sociais e muito menos para o MST. Faz parte dos partidos de esquerda esse respeito a autonomia. E muito menos o MST se preocupou em aderir a este ou aquele partido. Nós temos relações fraternas com todos eles. De respeito e autonomia.
Nossas críticas a política econômica do governo Lula, que ainda é neoliberal, e à lentidão da reforma agrária, são públicas e até acintosas. Nunca escondemos de ninguém e nem mudamos de opinião.
Nós acreditamos, no entanto, que as propostas de governo e as medidas, mais do que vontades pessoais de governantes, elas são frutos da correlação de forças na sociedade. Portanto, mais além de realizar as críticas necessárias e que são parte da democracia, os movimentos sociais devem seguir organizando o povo, elevando o nível de consciência das massas, para que se organizem, se mobilizem e lutem por seus direitos. É dessa pressão que virão as mudanças necessárias no futuro. Nós esperamos que seja durante o segundo mandato do governo Lula. Até por que os problemas sociais estão se agravando e o povo tenderá a ver com mais clareza as verdadeiras saídas, com o passar do tempo.
IHU On-Line – Que projeto de governo seria mais adequado ao país na visão do MST?
João Pedro Stédile – O Brasil está vivendo uma crise de projeto. Uma crise de destino, como se costuma dizer. Essa crise tem um caráter econômico, pois saímos do modelo de industrialização dependente e até agora não encontramos outro modelo de desenvolvimento nacional de interesse do povo. As propostas de política econômica neoliberal que foram adotadas a partir de Collor e FHC e que o governo Lula não teve forças suficientes para mudar, a rigor, não representam um modelo, nem de desenvolvimento, nem nacional, e muito menos popular. Veja, a economia cresceu apenas, vergonhosamente 2,3% ao ano, nos últimos 16 anos. E ainda se agravaram os problemas de concentração de riqueza, renda e da falta de trabalho. Os únicos setores que realmente acumularam foram o sistema financeiro e as grandes corporações transnacionais e seus aliados nacionais. Precisamos pensar outro modelo econômico para o Brasil. Para isso, os movimentos sociais, e não apenas o MST, defendem a idéia de que é necessário realizar um grande mutirão nacional de debates. A sociedade em geral e todas as formas de organização social e popular, precisam debater, pois aí está a raiz dos problemas. Nós, como MST, estamos participando da CMS (coordenação de movimentos sociais), da Assembléia Popular, da semana social da igreja católica, e de muitas outras iniciativas, para estimular o debate em torno de um novo projeto.
Já temos uma formulação genérica, baseada nesses debates. Dizemos que o novo projeto precisa ser nacional e popular. Nacional para atender as necessidades de todos os que moram no Brasil, preservando nossas riquezas naturais e popular para colocar os interesses do povo, e não dos capitalistas em primeiro lugar. E as necessidades do povo são a falta de terra, de trabalho, de moradia, de educação em todos os níveis, de lazer e de cultura.
Então um novo projeto precisa reorganizar a economia e a sociedade brasileira para resolver, de forma prioritária, esses graves problemas do povo brasileiro.
Mas de novo, não basta colocar no papel e ter boas idéias, nós vamos precisar conscientizar o povo, organizá-lo, debater com ele esse projeto, para que o povo gere uma energia, através da mobilização capaz de conseguir as mudanças na sociedade e no modelo econômico.
IHU On-Line – Quem faz o papel de esquerda no Brasil atualmente?
João Pedro Stédile – Todas as forças sociais e populares, das mais diferentes formas de organização, desde um grupo de pastoral da igreja, sindicatos e os partidos que se proponham a atacar os problemas estruturais da sociedade brasileira são organizações de esquerda. Esquerda é formada por todos os que querem mudanças estruturais, para termos uma sociedade mais justa, fraterna e igualitária. São de direita todos os que acham que assim está bom, que não preciosa mudar, ou apenas querem mudar as aparências para que tudo continue igual. Tudo continue igual na exploração dos que trabalham, mantendo suas taxas de lucro, as taxas de juros e o envio de nossa riqueza para o exterior na forma do pagamento de royalties, da dívida externa, do pagamento de juros, etc. Ser de direita é ser reacionário, não querer mudanças da estruturas. Ou aceitar apenas mudanças de nome, de rótulo.
Mas ser de esquerda é não apenas defender idéias de uma sociedade mais justa, com direitos e oportunidades iguais para todos e todas. Ser de esquerda é necessariamente colocar suas energias para conscientizar e organizar o povo para que lute pelas mudanças. Ser de esquerda é compreender que apenas o povo organizado tem a força necessária para fazer as mudanças estruturais.
IHU On-Line – O que senhor opina sobre os movimentos sociais no Brasil?
João Pedro Stédile – Os movimentos sociais no Brasil, infelizmente, na atualidade, estão vivendo também uma crise política e ideológica. Nós sabemos que a luta de classes ocorre na história na forma de ciclos dinâmicos, resultantes da vitória e hegemonia de uma ou outra classe. Desde a derrota eleitoral de 1989 e a implementação do neoliberalismo, estamos vivendo uma hegemonia total das forças do capital, agora aliados às corporações internacionais. Essa força hegemônica provocou uma derrota para a classe trabalhadora e um processo de descenso do movimento de massas e da organização. Então, nossa geração está vivendo um periodo de derrota. Mas como disse, esse processo é cíclico. Logo, logo, deveremos ter um processo de reascenso do movimento de massas, de acúmulo de forças, e aí sim, a disputa da hegemonia com o capital.
No entanto, a saída dessa crise e o acúmulo de forças, não acontecem apenas pela inércia da história. Exigem que coloquemos forças, energias, vontades políticas, para que o período do ciclo seja mais curto, senão ele será um longo período de derrota. E para acelerar essa ação política dos movimentos sociais, o que está presente em todas as doutrinas políticas é que temos que nos dedicarmos permanentemente na elevação no nível de consciência social e política da classe trabalhadora e ajudarmos a se organizar para a luta. Para isso, precisamos retomar o trabalho de base, a formação política dos militantes, ter nossos próprios meios de comunicação de massa e debater um novo projeto para o país.
Estou convencido de que devemos priorizar como movimento social o trabalho com a juventude pobre, da classe trabalhadora, que mora nas grandes cidades e está sem futuro. Esses jovens trabalhadores são os que podem ser os atores principais de um novo ciclo de reascenso ao movimento de massas. Que virá, só não sabemos quando e nem dirigido por quem.
IHU On-Line – Os movimentos sociais na América Latina têm realmente aprofundado o debate sobre seus pontos de vista perante a sociedade civil?
João Pedro Stédile – Os movimentos sociais da América Latina têm tido diversos espaços de articulação continental para troca de idéias e debater projetos, seja nacionais ou de integração continental. Temos tido os espaços no Fórum Social Mundial, estamos impulsionando inclusive uma articulação ao redor do que poderá ser uma assembléia mundial dos movimentos sociais, dentro dos FSM.
E temos também, diversas redes de articulação específicas que nos ajudam a intercambiar informações, experiências e idéias. Nós do campo, temos, por exemplo, a via campesina, que reúne mais de 120 organizações camponesas de todos os continentes. Há as articulações dos povos indígenas, dos sindicatos, (através das centrais sindicais), há articulações pastorais, a Marcha Mundial das Mulheres, e temos também diversas iniciativas da juventude e dos estudantes.
O que o neoliberalismo e o imperialismo fizeram nessas últimas duas décadas foi colocar-nos em todos os países do mundo na mesma situação: em crise. Mas, agora estamos enfrentando os mesmos inimigos: as corporações transnacionais e os bancos. Enfrentamos o FMI, o Banco Mundial, a OMC e a ALCA. E isso trouxe como contradição a necessidade de gerarmos maior intercâmbio e unidade internacional entre nós.
O internacionalismo do capital está contribuindo para o internacionalismo dos trabalhadores. E no final, nós venceremos. Por que as formas de espoliação da natureza e de exploração do trabalho estão tão aviltadas que estão colocando em risco a sobrevivência humana no planeta. E isso vai gerar mais consciência em toda sociedade civil, e maior oposição a esse capitalismo selvagem, que não tem mais futuro.