Hoje raiva e tristeza deram uma trégua. Saudade da rua cheia de gente. Ver torcidas rivais no estádio unirem-se contra o fascismo e colocarem seus corpos no enfrentamento é simbolicamente forte. As manifestações massivas em várias cidades norte americanas, exigindo justiça racial, fazem sonhar com uma revolta global dos pobres e oprimidos. Não que dê para comparar as ruas ocupadas por mais de uma semana nos Estados Unidos com as manifestações pontuais ocorridas no Brasil. Mas em ambos os países estamos de saco cheio de golpes, injustiças, fake News, miséria, assassinatos de negros e crianças inocentes! A luta contra os necropolíticos de plantão começa a sair para as ruas, apesar da pandemia.
Lá como cá, a juventude pobre está aprisionada pela falta de educação e saúde, pelo desemprego, pela violência, pelo racismo, pelos milicianos, pela polícia e agora pela pandemia. Apesar da curva ascendente da doença aqui, centenas foram às ruas protestar contra a ditadura em ascensão. Muitos mais estariam lá não fosse a necessidade do isolamento. Motivos, mais que todo mundo. Estamos sempre no topo das polícias que mais matam. E se não é a polícia são jagunços, milícias particulares. De acordo com a Anistia Internacional, o Brasil também é campeão em assassinatos de militantes de direitos humanos.
Se não mata, encarcera. O negócio é tirar o incômodo da frente, “resolver” o caso, exercitar um poderzinho. Pelas mãos das polícias, foram executadas aqui pelo menos 5.804 pessoas no ano passado. A população carcerária do Brasil só perde para a dos EUA (2,3 milhões) e a da China (1,6 milhão). Segundo dados do CNJ (Conselho Nacional de Justiça), estávamos com 812 mil presos no ano passado, sendo que 65% negros. Nos EUA os homens negros são encarcerados em quase seis vezes a taxa de homens brancos (HRD Human Rights Watch). E a justificativa para esses crimes de Estado é quase sempre a mesma, drogas.
Mas o discípulo superou o mestre na aplicação da política de “guerra às drogas”. Uma invenção do capitalismo para a eliminação da parcela mais indesejável e dispensável da sociedade. Enquanto nos EUA cerca de 25% dos encarceramentos são por crimes relacionados a drogas, aqui essa taxa é de quase 40%. A prisão de mulheres cresceu em dez anos mais de 500%, a grande maioria acusada de tráfico. E quem diz se é tráfico ou não é o poderoso milico em ação. Mas se for tráfico de cloroquina ou tonelada de cocaína em avião do governo ou de poderoso tem problema não. A droga só é ilícita lá na periferia.
Quem decide o que é lícito ou ilícito? Por que várias drogas são estimuladas e outras são proibidas? Justamente as prazerosas são proibidas! A liberdade de fumar um back deveria ser a mesma que tem qualquer um de tomar um uísque ou uma cerveja. Em todas as épocas da humanidade os proibicionismos serviram ao controle dos corpos. As mulheres conhecem isso bem. Objetos de desejo tornam-se proibidos por inacessíveis e muitos prazeres do corpo acessíveis são proibidos. Proibir o prazer é também um jeito de acabar com nossa saúde mental e estarmos mais disponíveis para a servidão necessária.
Todo proibicionismo é hipócrita. Os ricos têm acesso a tudo que é proibido, e a clandestinidade desse comércio só serve para produzir máfias e enriquecer muito uns poucos. Num país que nunca teve democracia para a maioria da população, o proibicionismo é desculpa para muita violência. Nossos corpos não nos pertencem e, de uma hora para outra, podemos ficar sem eles. Quantxs pobres e trabalhadores são assassinadxs ou encarceradxs diariamente nas periferias desse Brasil? Quantas mulheres morrem todos os dias ao tentarem abortar por conta própria ou clandestinamente? O Estado é o assassino. Na distopia que vivemos agora, a opressão e a miséria se agravam. A declaração de morte aos indesejáveis e invisíveis não brancos é feita cotidianamente pelo presidente da República, enquanto bebe rindo seu copo de leite branco.
Imagem: Whatsupp
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de Terezinha Vicente