Além da estabilidade funcional , tema tratado em artigo anterior desta série, a remuneração adequada e previsível no tempo é condição de sua segurança financeira e de estabilidade emocional dos servidores nos cargos públicos. Ambas são fatores necessários a qualquer pessoa inserida em uma relação de trabalho que apenas existe e se realiza em função do Estado, em favor da coletividade e em caráter permanente.
Desta maneira, ela precisa ser adequada e previsível não apenas para que o servidor goze de segurança financeira e estabilidade emocional no desempenho de suas funções, dificultando ao máximo que ele possa sofrer qualquer tipo de assédio moral, captura externa, tentativa de extorsão ou qualquer outro tipo de corrupção, como que ele tenha que de suas funções precípuas se dispersar, prejudicando com isso o seu desempenho profissional no cargo público e, por extensão, o desempenho institucional satisfatório da sua organização junto à população.
É claro que tais fatores são também importantes para as relações capital-trabalho no mundo dos negócios, razão pela qual o processo histórico de regulação social do trabalho incorporou tais temas na defesa de contratos por tempo indeterminado, remunerações mínimas garantidas, pletora de benefícios e direitos laborais e sociais, negociações coletivas, direito de greve, acesso à justiça etc.
Porém, diferentemente da ocupação no setor público, as ocupações no setor privado, mesmo aquelas contratadas sob o amparo das leis de proteção laboral e social ainda vigentes, estão mais fortemente sujeitas aos ciclos econômicos, discricionariedades e – por vezes – arbitrariedades dos empregadores. No mundo dos negócios, reinam – infelizmente, de modo quase naturalizado nas sociedades capitalistas contemporâneas, sobretudo naquelas subdesenvolvidas como a brasileira – relações assimétricas e muitas vezes desumanas de poder, razão pela qual a regulação pública (externa e coercitiva) exercida pelo Estado, por meio do sistema de justiça, sobre as relações capital-trabalho, é tão necessária, ainda que insuficiente, para mitigar ou contra arrestar as tendências abusivas, predatórias ou socialmente injustas que em geral as caracterizam.
Já no âmbito estatal, lugar por excelência da esfera pública, as relações laborais não são do tipo capital-trabalho, são relações estatutariamente assentadas no pressuposto da igualdade formal e real entre indivíduos e destes com o Estado-empregador, ente que representa a própria sociedade coletivizada. Nem por isso, como se sabe, prescindem de praticamente os mesmos direitos e deveres consagrados ao emprego assalariado típico, e também de semelhantes aparatos burocráticos de justiça, defesa e garantia de direitos em suas relações com o Estado-empregador.
Diante do exposto, fica clara a razão pela qual a proposta liberal-gerencialista de transformar a remuneração (fixa, adequada e previsível) do servidor público em uma remuneração flexível, contendo uma parte fixa mínima e outra variável, remunerada na forma de bônus extra por desempenho individual, afronta os princípios supracitados da segurança financeira e da estabilidade emocional.
Uma vez implementadas no setor público, propostas de remuneração flexível tenderão a fazer aumentar – ao invés de diminuir! – a insegurança financeira e a instabilidade emocional dos servidores afetados, deixando-os mais expostos a vivenciarem situações de assédio moral, captura externa, tentativas de extorsão ou qualquer outro tipo de corrupção ativa ou passiva no desempenho de suas funções. Deste modo, ao invés de estimular um maior e melhor desempenho individual, ou incrementar a produtividade própria ou organizacional, medidas dessa natureza tenderão, na verdade, a acirrar a competição interna e a deteriorar as condições pessoais e coletivas de sanidade e salubridade no ambiente de trabalho.
No setor público, pela simples razão de que critérios privados ou meramente técnicos não podem ser transpostos automaticamente, o aumento da competição laboral interna, ainda que possa redundar em maiores indicadores de produtividade individual, raramente significará melhores condições de sanidade e salubridade em locais de trabalho que primam pela cooperação como fundamento da ação coletiva, nem tampouco significará maior eficiência, eficácia ou efetividade da ação pública de modo geral.
Metodologicamente, dadas as imensas diferenças qualitativas que existem entre as funções de natureza pública (cuja razão última é de índole sócio-política) e as de motivação privada (cuja razão última é de índole econômica, mais facilmente quantificável e mensurável), e sendo dificílimo identificar e isolar as variáveis relevantes mínimas necessárias ao cômputo da produtividade (individual ou agregada) no setor público, conclui-se que as propostas liberais-gerencialistas são, como um todo, incompatíveis com a essência pública do Estado e suas necessidades de planejamento, gestão e administração.
Diferenciais de remunerações e recomendações para enfrentar o problema.
No que toca às remunerações no setor público brasileiro, em particular frente às do setor privado, é importante considerar, idealmente, ocupações equivalentes, nos mesmos municípios ou meso regiões, com atributos demográficos e setoriais semelhantes, para comparar os salários de ambos os setores de atividade. Ao fazer isso, algumas coisas ficam mais claras, por exemplo:
– Há perfis ocupacionais não comparáveis entre setores público e privado, com destaque para os ocupados com a defesa nacional, com o funcionamento do judiciário, com a segurança pública, bem como os ligados à produção de ciência básica e à geração de informações primárias e administrativas, todas funções públicas para as quais simplesmente não há correspondência, para comparação adequada, no setor privado;
– A análise dos dados do funcionalismo público, seja por meio do Atlas do Estado Brasileiro, seja pelas pesquisas amostrais (PNAD-C) do IBGE, revelam uma imensa heterogeneidade entre as ocupações e suas remunerações, o que é camuflado ao se cotejar somente as médias salariais entre empregados públicos e privados, de modo descontextualizado;
– Vale notar que, excetuando algumas ocupações, como as acima citadas, trabalhadores de nível médio no serviço público não são mais bem remunerados que trabalhadores de mesmo perfil no setor privado; eles apenas são trabalhadores não tão precarizados como aqueles. Mas mesmo no setor público, já há um processo de precarização em curso, com o crescimento dos trabalhadores sem carteira no seio do funcionalismo, mormente em âmbito municipal, fenômeno provavelmente associado a estratégias de ocupação (via cooperativas, terceirizações e pejotização) que não possam ser computadas para fins das regras fiscais (despesas com pessoal) impostas pela LRF;
– Já para aquela parte das ocupações que pode ser considerada comparável entre setores público e privado, são os servidores da esfera federal, pela ordem dos poderes Judiciário, Legislativo e Executivo, aqueles com maior escolaridade (nível superior completo) e os servidores em ocupações associadas à administração pública e à área jurídica os que apresentam maior prêmio salarial, ao compará-los com trabalhadores do setor privado com características sócio-ocupacionais similares;
– Desta forma, pode-se dizer que o hiato salarial favorável ao setor público, nos casos acima citados em que isso acontece, se deve a diferenças nas características observadas (tais como escolaridade, idade e produtividade), bem como a determinantes de ordem não estritamente econômica, relacionadas a funções de Estado de caráter permanente e intransferíveis, cujas ocupações devem possuir baixa rotatividade e cujas remunerações, portanto, devem possuir nível adequado e estável (ou menos oscilante) em termos reais ao longo dos ciclos econômicos;
– Por fim, considerando-se a imensa heterogeneidade na distribuição do prêmio salarial do funcionalismo público como um todo, propostas de ajustes paramétricos com vistas a reduzir ou eliminar tal distinção podem ter efeitos pouco expressivos na desigualdade geral de rendimentos, além de negativos no crescimento econômico, pela redução da demanda final de bens e serviços que tal equalização para baixo produziria.
Tudo somado, há sim que se promover mudanças no sentido da diminuição dos hiatos salariais entre setores público e privado, mas para tanto, as conclusões dos estudos aqui citados apontam na direção de abordagem dupla. Por um lado, é fundamental recuperar e reativar uma perspectiva (governamental, empresarial e sindical) e políticas públicas de maior e melhor regulação e reestruturação dos mercados privados de trabalho, no sentido de se buscar menores taxas de desemprego e informalidade, assim como maiores taxas de produtividade e recomposição salarial, inscritas em trajetórias de recuperação do crescimento econômico em bases mais sustentáveis dos pontos de vista produtivo, ambiental e humano.
Por outro lado, é fundamental realizar ajustes remuneratórios no setor público, levando em consideração os determinantes e as especificidades presentes em cada nível federativo de governo (Federal, Estadual e Municipal), bem como atentando para as situações discrepantes em cada poder da União (Judiciário, Legislativo e Executivo). Por exemplo: a maioria dos problemas remuneratórios discrepantes poderia ser resolvido simplesmente aplicando-se, sem exceções, o teto remuneratório do setor público a cada nível da federação e poder da república. Além disso, é preciso eliminar ou diminuir drasticamente os adicionais de remuneração que muitas vezes se tornam permanentes em vários casos, distorcendo para cima os valores efetivamente pagos a uma minoria de servidores e funções privilegiadas.
Isso tudo para dizer que os problemas de remuneração, alardeados pela atual área econômica do governo por meio da grande mídia e base parlamentar, são a exceção e não a regra dentro do funcionalismo público, em qualquer recorte analítico que se queira utilizar. Significa que é o crescimento econômico sustentado ao longo do tempo e a sua correspondente arrecadação tributária que garantem as condições de incorporação, custeio e profissionalização de novos servidores à máquina pública, e não o corte quantitativo indiscriminado de funcionários ou a precarização de suas condições, remunerações e relações de trabalho que estimularão o desenvolvimento com equidade num país ainda tão heterogêneo e desigual como o Brasil.
imagem: montagem ciranda.net (pirâmide remuneração servidores públicos)
José Celso Cardoso Jr é Doutor em Economia pelo IE-Unicamp, PHD em Governo e Políticas Públicas pelo IGOP-UAB. Desde 1997 é Técnico de Planejamento e Pesquisa do IPEA e desde 2019 é Presidente da Afipea-Sindical, condição na qual escreve este artigo. As opiniões, erros e omissões são responsabilidade do autor.
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