O PL 3453/2015, que se encontra em análise na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados, propõe alterações no regime de outorgas previsto na Lei Geral deTelecomunicações (LGT), sob a justificativa de que é necessário que haja uma mudança na legislação para estimular a expansão da infraestrutura e o investimento no sistema de telecomunicações. Com o fim do prazo de concessão da telefonia fixa (STFC) em 2025, a proposta busca alterar a modalidade de licenciamento do STFC, passando de um regime público de concessão para autorização no regime privado.
Na prática, o PL retira a possibilidade de o Estado impor obrigações a prestadoras de serviços de telecomunicações e cria a justificativa legal para entregar às concessionárias de telefonia fixa cerca de R$ 108 bilhões (conforme Acórdão 3311/2015 TCU)) em bens considerados essenciais para a prestação do serviço (prédios, cabos e outros elementos da infraestrutura – redes de transporte e de acesso e toda a obra de engenharia civil para passar os cabos por todo o Brasil) – os chamados bens reversíveis.
Para as dezenas de organizações da sociedade civil que que atuam em defesa dos usuários e integram a Campanha Banda Larga é um Direito Seu e a Coalizão Direitos na Rede, trata-se de uma medida inconstitucional, pois acaba com o regime público para os serviços de telecomunicações, o que é incompatível com o dever de o Estado garantir a prestação dos serviços públicos, nos termos do art. 175, da CF.
A proposta contraria também os princípios orientadores da atuação da administração
pública nas licitações, pois, quando os contratos da telefonia fixa foram assinados, a regra estabelecida foi a de retorno da posse dos bens reversíveis para a União ao final das concessões. Ou seja, mudar a regra agora, trocando os bens reversíveis por investimentos em redes de fibra ótica que estarão em regime privado, representa vantagem que viola o princípio da impessoalidade, na medida em que as três grandes concessionárias – VIVO,NET e OI, que já dominam 85% do mercado de banda larga, estarão em situação privilegiada contra garantias da lei de concorrência e defesa do consumidor.
É ainda mais grave que o Estado brasileiro abra mão de bilhões de reais em um momento de crise, justamente quando o Parlamento discute a limitação de gastos com educação e saúde, uma vez que a Agência Nacional de Telecomunicações (ANATEL) tem divulgado que a troca de bens reversíveis por novos investimentos se dará com o valor de R$ 17 bilhões.
Além de uma entrega irresponsável de bens públicos, a medida representa um improviso regulatório incapaz de conferir um ambiente seguro para o desenvolvimento de um setor que é estratégico para o país. As mudanças no modelo do serviço de telecomunicações propostas pelo PL 3453/2015 beneficiam demasiadamente as grandes empresas, em detrimento da União e da sociedade brasileira.
Isso porque a eliminação do poder regulatório do Estado de definir planos de investimentos às empresas condena o Brasil à impossibilidade de ampliar o acesso à
Internet de sua população, justamente quando o mundo caminha em sentido contrário, com o estabelecimento de planos acesso à banda larga que garantam a universalização do serviço. Assim, a aprovação do texto representaria um retrocesso na busca por políticas de inclusão digital efetivas, uma diretriz estabelecida também pelo Marco Civil da Internet (art. 27,inc. I)
No modelo proposto no PL, não há caminho para o país ir além do índice atual de metade dos brasileiros/as conectados. A tentativa de resolver o problema do acesso à rede somente no âmbito do mercado já se mostrou insuficiente num cenário de um amplo contingente de pessoas que não possui renda para consumir esse serviço com qualidade.
Vale lembrar que parte dos acessos à internet no Brasil, por meio de smartphones, ocorre em uma conectividade extremamente restrita, limitada ao básico. Com a aprovação do PL 3453/2015, a criação de internautas de primeira e segunda categoria se intensificará.É certo que a configuração jurídica definida pela LGT já foi bastante distorcida desde a sua edição em 1997, por diferentes fatores:
– a alteração do Plano Geral de Outorgas, ocorrido em 2008, para viabilizar a
incorporação da Brasil Telecom pela OI;
– a alteração do art. 86 da LGT em 2011 (por meio da Lei 12.485), que permitiu que as
concessionárias prestassem outros serviços além da telefonia fixa;
– o desrespeito, chancelado pela ANATEL, à proibição de subsídios cruzados entre
modalidades de serviços;
– e a não regulação das tarifas da telefonia fixa pelo custo (a ANATEL estabeleceu que apenas em 2019 o modelo de custos será aplicado).
Tudo isso fez com que o setor tenha evoluído em sentido contrário a um dos principais pilares da LGT e resultado em um mercado altamente concentrado a anti-competitivo, conforme apontam os gráficos de concentração da banda larga divulgados pela própria ANATEL. O PL 3453/15 vai agravar ainda mais esta situação.
Por que o PL 3453/15 contraria os princípios da legislação brasileira
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Viola a Constituição Federal, que atribui à União a exploração dos serviços de
telecomunicações e a garantia do acesso a estes em caráter universal. A Constituição Federal não diz em momento algum que o Estado pode abrir mão de
sua atribuição de garantir a continuidade de serviços públicos considerados
essenciais.
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O caráter essencial dos serviços de telecomunicações é fundamental pois viabiliza a atuação regulatória do poder público, como a definição de metas de universalização, qualidade e continuidade, bem como regulação de tarifas. Ao extinguir o regime público para os serviços de telecomunicações, o PL 3453 minará as possibilidades de universalização desses serviços, contra disposição expressa do art. 175, da Constituição Federal, que impõe ao Poder Público o deverde garantir a prestação dos serviços públicos.
Contraria o Marco Civil da Internet, que estabelece que o acesso à Internet é
direito de todos (art. 4o) e que “o acesso à internet é essencial ao exercício da
cidadania” (Art.7 o ). Isso significa que cabe ao Poder Público a formulação e
implantação de políticas públicas que atendam ao direito de universalidade do serviço de conexão à internet. Se o serviço de conexão à internet é essencial e deve ser universal, a infraestrutura que lhe dá suporte deve ser tratada de modo a
garantir o cumprimento das finalidades legais. Caso seja aprovado, o PL 3453/15
estabelecerá o regime privado, sem obrigações de universalização e conferindo às
operadores a prerrogativa de transformar o valor dos bens reversíveis à União em
investimentos para a construção de redes privadas, das quais usufruem apenas as
operadoras, sem quaisquer obrigações de comprometimento de compartilhamento
com pequenas e médias empresas e com políticas públicas de inclusão digital. A
proposta entra em confronto direto com o caráter essencial da Internet
estabelecido pelo Marco Civil.
Traz riscos à continuidade dos serviços e entrega o bens públicos à iniciativa
privada: Ao permitir a substituição dos contratos de concessão para termos de
autorização, o PL coloca em risco o modelo de reversibilidade de bens e a
continuidade dos serviços de telefonia fixa, afetando milhões de brasileiros. Além
disso, uma parte significativa da infraestrutura das redes de telefonia fixa, que tem
papel fundamental na ampliação do acesso à Internet, será transferida para as
empresas. Esses bens foram avaliados em cerca de R$ 108 bilhões, embora o
governo fale em R$ 17 bilhões para a operação. Em 2015, o Tribunal de Contas
da União constatou que a Anatel não tem controle efetivo sobre os bens
reversíveis e que os métodos de acompanhamento desses pela agência não são
suficientes para assegurar a continuidade do serviço de telefonia fixa. Pairam
muitas dúvidas sobre os cálculos feitos pela Anatel e uma mudança legal como
essa jogaria uma cortina de fumaça sobre o problema regulatório desses bens.
Impede uma política pública de inclusão digital: A modificação do artigo 65 da
LGT, tal como sugerido pelo texto, para permitir a exploração apenas em regime
privado de modalidades de serviço de interesse coletivo, de caráter essencial, deveser afastada, pois colide com todo o trabalho feito nos últimos anos para
desenvolvimento de uma nova moldura regulatória para a Internet banda larga,
que ainda carece de regime jurídico próprio. O risco que se corre é que os
elementos de universalização, modicidade tarifária, qualidade e continuidade –
típicos do regime público – sejam abdicados, em prol de um discurso
economicista de “fomento ao investimento” e “desregulamentação do setor de
telecomunicações”.
Não garante a ampliação do investimento em infraestrutura: Um bom exemplo para demonstrar a inconveniência de retirar das operadoras as obrigações de universalização e continuidade dos serviços prestados em regime privado é o que ocorreu com a telefonia móvel no Brasil. Apesar de possuir mais de 270 milhões de linhas habilitadas, ainda há localidades sem acesso ao serviço – sobretudo aquelas em que não há interesse econômico na exploração do mercado – justamente por não haver metas para a expansão das redes por parte das operadoras.
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Reduz a concorrência no setor: Na medida em que permitirá que as atuais
concessionárias se apropriem de um acervo bilionário de bens públicos, o PL vai
agravar a falta de concorrência no setor, resultando numa vantagem competitiva
inadmissível no atual quadro de concentração do mercado de telecomunicações.
Segundo dados da própria ANATEL, somente no Estado de São Paulo, onde está
concentrado mais de 45% do mercado de telecomunicações, duas empresas
concentram o market share da banda larga fixa: Claro e Telefônica detêm mais de
83% do mercado e em todos os demais Estados do Brasil, estas duas
concessionárias e a OI detêm 85%.
Propostas da sociedade civil alternativas ao PL 3453/2015
A fim de definir diretrizes para um planejamento de longo prazo, de forma consistente e democrática, o Executivo e o Legislativo brasileiro deveriam conduzir o processo de
revisão do modelo regulatório do setor de telecomunicações a partir de um amplo debate com todos os segmentos envolvidos, tendo como lastro estudos profundos e o respeitoaos princípios que orientam o atual marco legal do país. Assim, propomos:
1) Que a regulação para o acesso à infraestrutura de telecomunicações se dê tanto
no regime privado quanto no regime público, concomitantemente, com a celebração
de novos contratos de concessão (regime público) para a implantação de redes de
transporte nos grandes troncos e, no regime privado, para a oferta do acesso até o usuário final. Não se trata de aumentar a regulação atual, mas de garantir o mínimo necessário de controle por parte da União – como se faz em países democráticos – para que o país tenha mecanismos de combater o abismo de desigualdades de atendimento entre as diversas regiões e classes sociais.
2) Em vez de eliminar o regime público e as regras de reversibilidade, a tarefa do Estado e da Anatel deveria ser a de avaliar cuidadosamente as inconsistências na atual relação dos bens reversíveis e nos procedimentos de controle e acompanhamento desse bens. Sugerimos que a ANATEL cumpra as orientações do acórdão 3311/2015 do Tribunal de Contas da União, cujas principais recomendaçõe são:
(i) encaminhar ao TCU a apuração do valor total dos recursos obtidos por cada concessionária a partir das alienações de bens reversíveis desde 2007, contendo os documentos usados no cálculo;
(ii) identificar os tipos de bens reversíveis, de acordo com a classificação da Anatel, que foram alienados em cada ano, com o valor total obtido e quantidade de bens; (iii)
identificar os atos de anuência da Anatel que autorizaram as alienações em cada ano,
informando o quantitativo e classificação dos bens envolvidos.
3) Estender o regime público para a banda larga, de modo a reconhecer sua
essencialidade como suporte para o acesso a Internet em banda larga como foco da
reforma da LGT. A Câmara dos Deputados precisa do envolvimento da sociedade nas
decisões técnicas sobre a Internet, sobre os serviços de telecomunicações e sobre a
universalização do acesso. O verdadeiro trabalho a ser feito é pensar na construção de um regime jurídico inovador e que dê conta da essencialidade da Internet banda larga, considerando os princípios da universalidade; modicidade tarifária, acessibilidade; continuidade; qualidade; eficiência e garantia dos direitos dos consumidores.
4) Retomar o debate iniciado pelo então Ministério das Comunicações, no último
trimestre de 2015, por meio de uma primeira consulta pública sobre a redefinição do
marco regulatório de telecomunicações. A referida consulta recebeu mais de 900
contribuições de diferentes setores da sociedade. Esperava-se, após a fase inicial, que o governo federal preparasse uma minuta de anteprojeto de lei para discussão com a sociedade, nos moldes do que o Ministério da Justiça fez para a elaboração do Marco Civil da Internet. Esse trabalho colaborativo deve ser retomado, com apoio da Câmara dos Deputados.
5) Rejeitar “soluções jurídicas ad hoc” e garantir maior transparência e
participação social no processo. Atualmente, tramita na Câmara dos Deputados, além
do PL 3.453/15, o PL 6789/2013 (apensado ao projeto de lei do senado 7.406/14), que
vinha sendo debatido pela Comissão Especial de Telecomunicações da Câmara. Há ainda as discussões internas nos Grupos de Trabalho da Anatel. Defendemos que essas diversas frentes não sejam tratadas de forma isolada e que a redefinição da Lei Geral de Telecomunicações, tendo como foco a universalização da Internet banda larga, seja fruto de um amplo debate com a sociedade brasileira.
6) Envolver o Comitê Gestor da Internet (CGI.br), organização amparada no modelo
de governança multissetorial, nas discussões sobre alterações na LGT, que certamente impactarão no acesso à Internet no país. Uma discussão sobre alterações de grande magnitude na LGT não deve ocorrer sem o apoio com caráter plural de uma instância central para a Internet como o CGI.br.
Mais informações:
Campanha Banda Larga é um Direito Seu –
http://campanhabandalarga.redelivre.org.br
Coalizão Direitos na Rede – www.coalizaodireitosnarede.org.br