Foto: Revista Fórum
1. Ética, violência e racismo
Numa perspectiva geral, podemos dizer que a ética procura definir, antes de mais nada, a
figura do agente ético e de suas ações e o conjunto de noções (ou valores) que balizam o
campo de uma ação que se considere ética. O agente ético é pensado como sujeito ético,
isto é, como um ser racional e consciente que sabe o que faz, como um ser livre que
decide e escolhe o que faz, e como um ser responsável que responde pelo que faz. A ação
ética é balizada pelas idéias de bom e mau, justo e injusto, virtude e vício, isto é, por
valores cujo conteúdo pode variar de uma sociedade para outra ou na história de uma mesma
sociedade, mas que propõem sempre uma diferença intrínseca entre condutas, segundo o bem,
o justo e o virtuoso. Assim, uma ação só será ética se for consciente, livre e
responsável e só será virtuosa se for realizada em conformidade com o bom e o jus to. A
ação ética só é virtuosa se for livre e só será livre se for autônoma, isto é, se
resultar de uma decisão interior ao próprio agente e não vier da obediência a uma ordem,
a um comando ou a uma pressão externos. Enfim, a ação só é ética se realizar a natureza
racional, livre e responsável do agente e se o agente respeitar a racionalidade,
liberdade e responsabilidade dos outros agentes, de sorte que a subjetividade ética é uma
intersubjetividade. A ética não é um estoque de condutas e sim uma práxis que só existe
pela e na ação dos sujeitos individuais e sociais, definidos por formas de sociabilidade
instituídos pela ação humana em condições históricas determinadas.
A ética se opõe à violência, palavra que vem do latim e significa: 1) tudo o que age
usando a força para ir contra a natureza de algum ser (é desnaturar); 2) todo ato de
força contra a espontaneidade, a vontade e a liberdade de alguém (é coagir, constranger,
torturar, brutalizar); 3) todo ato de violação da natureza de alguém ou de alguma coisa
valorizada positivamente por uma sociedade (é violar); 4) todo ato de transgressão contra
aquelas coisas e ações que alguém ou uma sociedade define como justas e como um direito;
5) conseqüentemente, violência é um ato de brutalidade, sevícia e abuso físico e/ou
psíquico contra alguém e caracteriza relações intersubjetivas e sociais definidas pela
opressão, intimidação, pelo medo e pelo terror.
A violência se opõe à ética porque trata seres racionais e sensíveis, dotados de
linguagem e de liberdade como se fossem coisas, isto é, irracionais, insensíveis, mudos,
inertes ou passivos. Na medida em que a ética é inseparável da figura do sujeito
racional, voluntário, livre e responsável, tratá-lo como se fosse desprovido de razão,
vontade, liberdade e responsabilidade é tratá-lo não como humano e sim como coisa,
fazendo-lhe violência nos cinco sentidos em que demos a esta palavra.
É sob este aspecto (entre outros, evidentemente), que o racismo é definido como
violência. Não é demais lembrar quando essa idéia aparece.
De fato, não se sabe muito bem qual é a origem da palavra”raça”- os antigos gregos
falavam em etnia e genos, os antigos hebreus, em povo, os romanos, em nação; e essas três
palavras significavam o grupo de pessoas descendentes dos mesmos pais originários. Alguns
dicionários indicam que, no século XII, usava-se a palavra francesa”haras” para se
referir à criação de cavalos especiais e pode-se supor que seu emprego se generalizou
para outros animais e para vegetais, estendendo-se depois aos humanos, dando origem à
palavra ”raça”. Outros julgam que a palavra se deriva de um vocábulo italiano, usado a
partir do século XV,”razza”, significando espécie animal e vegetal e, posteriormente,
estendendo-se para as famílias humanas, conforme sua geração e a continuidade de suas
características físicas e psíquicas (ou seja, ganhando o sentido das antigas palavras
etnia, genos e nação). Quando, no século XVI, para seqüestrar as fortunas das famílias
judaicas da Península Ibérica, a fim de erguer um poderio náutico para criar impérios
ultramarinos, a Inquisição inventou a expressão”limpeza de sangue?, significando a
conversão dos judeus ao cristianismo. Com isso, a distinção religiosa, que separava
judeus e cristãos, recebeu pela primeira vez um conteúdo étnico.
É interessante observar, porém, que a palavra ”racial” surge apenas no século XIX,
particularmente com a obra do francês Gobineau, que, inspirando-se na obra de Darwin,
introduziu formalmente o termo”raça” para combater todas formas de miscigenação,
estabelecendo distinções entre raças inferiores e superiores, a partir de características
supostamente naturais. E, finalmente, foi apenas no século XX que surgiu a palavra
?racismo?, que, conforme Houaiss, é uma crença fundada numa hierarquia entre raças, uma
doutrina ou sistema político baseado no direito de uma raça, tida como pura e superior,
de dominar as demais. Com isso, o racismo se torna preconceito contra pessoas julgadas
inferiores e alimenta atitudes de extrema hostilidade contra elas , como a separação ou o
apartamento total – o apartheid – e a destruição física do genos, isto é, o genocídio.
Seja no caso ibérico, seja no da colonização das Américas, seja no de Gobineau, seja no
do apartheid, no do genocídio praticado pelo nazismo contra judeus, ciganos, poloneses e
tchecos, ou o genocídio atual praticado pelos dirigentes do Estado de Israel contra os
palestinos, a violência racista está determinada historicamente por condições materiais,
isto é, econômicas e políticas. Em outras palavras, o racismo é uma ideologia das classes
dominantes e dirigentes, interiorizada pelo restante da sociedad e.
Ora, o fato de que no Brasil não tenha havido uma legislação apartheid, nem formas de
discriminação como as existentes nos Estados Unidos, e que tenha havido miscigenação em
larga escala, faz supor que, entre nós, não há racismo. O fato de que tenha sido
necessária a promulgação da Lei Afonso Arinos e que o racismo tenha sido incluído pela
Constituição de 1988 entre os crimes hediondos, deve levar-nos a tratar a suposição da
inexistência do racismo num contexto mais amplo, qual seja, no de um mito poderoso, o da
não-violência brasileira. Trata-se da imagem de um povo ordeiro, pacífico, generoso,
alegre, sensual , solidário que desconhece o racismo, o sexismo, o machismo e o
preconceito de classe, que respeita as diferenças étnicas, religiosas e políticas, não
discrimina as pessoas por sua posição econômico-social nem por suas escolhas sexuais, etc.
2. O mito da não-violência brasileira
Por que mito? Porque:
a) um mito opera com antinomias, tensões e contradições que não podem ser resolvidas sem
uma profunda transformação da sociedade no seu todo e que por isso são transferida s para
uma solução imaginária, que torna suportável e justificável a realidade. Em suma, o mito
nega e justifica a realidade negada por ele;
b) um mito cristaliza-se em crenças que são interiorizadas num grau tal que não são
percebidas como crenças e sim tidas não só como uma explicação da realidade, mas como a
própria realidade. Em suma, o mito substitui a realidade pela crença na realidade narrada
por ele e torna invisível a realidade existente;
c) um mito resulta de ações sociais e produz como resultado outras ações sociais que o
confirmam, isto é, um mito produz valores, idéias, comportamentos e práticas que o
reiteram na e pela ação dos membros da sociedade. Em suma, o mito não é um simples
pensamento, mas formas de ação;
d) um mito tem uma função apaziguadora e repetidora, assegurando à sociedade sua
auto-conservação sob as transformações históricas. Isto significa qu e um mito é o
suporte de ideologias: ele as fabrica para que possa, simultaneamente, enfrentar as
mudanças históricas e negá-las, pois cada forma ideológica está encarregada de manter a
matriz mítica inicial. No nosso caso, o mito fundador é exatamente o da não-violência
essencial da sociedade brasileira.
Muitos indagarão como o mito da não-violência brasileira pode persistir sob o impacto da
violência real, cotidiana, conhecida de todos e que, nos últimos tempos, é também
ampliada por sua divulgação e difusão pelos meios de comunicação de massa. Ora, é
justamente no modo de interpretação da violência que o mito encon tra meios para
conservar-se. Se fixarmos nossa atenção ao vocabulário empregado pelos mass media,
observaremos que os vocábulos se distribuem de maneira sistemática:
– fala-se em chacina e massacre para referir-se ao assassinato em massa de pessoas
indefesas, como crianças, favelados, encarcerados, sem-terra;
– fala-se em indistinção entre crime e polícia para referir-se à participação de forças
policiais no crime organizado, particularmente o jogo do bicho, o narcotráfico e os
seqüestros;
– fala-se em guerra civil tácita para referir-se ao movimento dos sem-terra, aos embates
entre garimpeiros e índios, policiais e narcotraficantes, aos homicídios e furtos
praticados em pequena e larga escala, mas também para referir-se ao aumento do
contingente de desempregados e habitantes das ruas, aos assaltos coletivos a
supermercados e mercados, e para fal ar dos acidentes de trânsito;
– fala-se em fraqueza da sociedade civil para referir-se à ausência de entidades e
organizações sociais que articulem demandas, reivindicações, críticas e fiscalização dos
poderes públicos;
– fala-se em debilidade das ins tituições políticas para referir-se à corrupção nos três
poderes da república, à lentidão do poder judiciário, à falta de modernidade política;
– fala-se, por fim, em crise ética.
Essas imagen s têm a função de oferecer uma imagem unificada da violência. Chacina,
massacre, guerra civil tácita e indistinção entre polícia e crime pretendem ser o lugar
onde a violência se situa e se realiza; fraqueza da sociedade civil, debilidade das
instituições e crise ética são apresentadas como impotentes para coibir a violência. As
imagens indicam a divisão entre dois grupos: de um lado, estão os grupos portadores de
violência, e de outro, os grupos impotentes para combatê-la.
Essas imagens baseiam-se em alguns mecanismos ideológicos por meio dos quais se dá a
conservação da mitologia.
O primeiro mecanismo é o da exclusão: afirma-se que a nação brasileira é não-violenta e
que, se houver violência, esta é praticada por gente que não faz parte da nação (mesmo
que tenha nascido e viva no Brasil). O mecanismo da exclusão produz a diferença entre um
nós-brasileiros-não-violentos e um eles-não-brasileiros-violentos. “Eles” não fazem parte
do “nós”.
O segundo é o da distinção: distingue-se o essencial e o acidental, isto é, por essência,
os brasileiros não são violentos e, portanto, a violência é acidental, um acontecimento
efêmero, passageiro, uma “epidemia” ou um “surto” localizado na superfície de um tempo e
de um espaço definidos, superável e que deixa intacta nossa essência não-violenta.
O terceiro é jurídico: a violência fica circunscrita ao campo da delinquência e da
criminalidade, o crime sendo definido como ataque à propriedade privada (fu rto, roubo e
latrocínio). Esse mecanismo permite, por um lado, determinar quem são os “agentes
violentos” (de modo geral, os pobres e, entre estes, os negros) e legitimar a ação da
polícia contra a população pobre, os negros, as crianças de rua e os favelados. A ação
policial pode ser, às vezes, considerada violenta, recebendo o nome de “chacina” ou
“massacre” quando, de uma só vez e sem motivo, o número de assassinados é muito elevado.
No restante das vezes, porém, o assassinato policial é considerado normal e natural, uma
vez que se trata da proteger o “nós” contra o “eles”.
Finalmente, o último mecanismo é o da inversão do real, graças à produção de máscaras que
permitem dissimular comportamentos, idéias e valores violentos como se fossem
não-violentos. Assim, por exemplo, o machismo é colocado como proteção à natural
fragilidade feminina, proteção inclui a idéia de que as mulheres precisam ser protegidas
de si próprias, pois, como todos sabem, o estupro é um ato feminino de provocação e
sedução; o paternalismo branco é visto como proteção para auxiliar a natural
inferioridade dos negros, os quais, como todos sabem, são indolentes e safados; a
repressão contra os homossexuais é considerada proteção natural aos valores sagrados da
família e, agora, da saúde e da vida de todo o gênero humano ameaçado pela Aids, trazida
pelos degenerados, etc..
No caso desse mecanismo de inversão, foi sintomática a reação de uma parte da classe
média diante do Prouni. De fato, muitos disseram, pasmem!, que se tratava de”opressão
racial contra os brancos”, no momento da entrada na universidade, e de”estímulo ao ódio
contra os negros”, durante a permanência universitária. Em suma, o Prouni seria a criação
do racismo no Brasil!
Mais clara e ainda mais paradigmática do mecanismo da inversão é o que acaba de ocorrer
com a Ministra Matilde Ribeiro pela entrevista concedida à BBC: para puni-la por todas as
políticas de ações afirmativas e de criação democrática de direitos sociais, econômicos e
culturais, para puni-la por sua luta contra a violência racial, os meios de comunicação
de massa tentam transformá-la em agente da violência. Ora, ao isolar suas palavras do
contexto, os defensores da”não-violência” praticam uma ato de violência psíquica,
intelectual e política, pois deformam e traem o que ela disse. Usando essa violência,
declaram que não há racismo no Brasil, a não ser este que, segundo eles, ela teria
instituído. E, suprema ironia, um dos jornais atacantes e pretensamente não racista
costumava referir-se a FHC como”presidente mulatre”!
Em resumo, no Brasil, a violência não é percebida ali mesmo onde se origina e ali mesmo
onde se define como violência propriamente dita, isto é, como toda prática e toda idéia
que reduz um sujeito à condição de coisa, que viola interior e exteriormente o ser de
alguém, que perpetua relações sociais de profunda desigualdade econômica, social e
cultural. Mais do que isto, a sociedade não percebe que as próprias explicações
oferecidas são violentas porque está cega ao lugar efetivo de produção da violência, isto
é, a estrutura da sociedade brasileira, que, em sua violência cotidiana, reitera,
alimenta e repete o mito da não-violência.
3. Uma sociedade violenta
Conservando as marcas da sociedade colonial escravista, a sociedade brasileira é
determinada pelo predomínio do espaço privado (ou os interesses econômicos) sobre o
público e, tendo o centro na hierarquia familiar, é fortemente hierarquizada em todos os
seus aspectos: nela, as relações sociais e intersubjetivas são sempre realizadas como
relação entre um superior, que manda, e um inferior, que obedece. As diferenças e
assimetrias são sempre transformadas em desigualdades, que reforçam a relação
mando-obediência. O outro jamais é reconhecido como sujeito nem como sujeito de direitos,
jamais é reconhecido como subjetividade nem como alteridade. As relações, entre os que
julgam iguais, são de”parentesco”, isto é, de cumplicidade; e, entre os que são vistos
como desiguais, o relacionamento toma a forma do favor, da clientela, da tutela ou da
cooptação, e, quando a desigualdade é muito marcada, assume a forma da opressão. Há,
assim, a naturalização das desigualdades econômicas e sociais, do mesmo modo que há
naturalização das diferenças é tnicas (consideradas desigualdades raciais entre
superiores e inferiores), religiosas e de gênero, bem como naturalização de todas formas
visíveis e invisíveis de violência.
A violência está de tal modo interiorizada nos corações e mentes que alguém pode usar a
frase “um negro de alma branca” e não ser considerado racista. Pode referir-se aos
serviçais domésticos com a frase “uma empregada ótima: conhece seu lugar” e considerar-se
isento de preconceito de classe. Pode dizer, como disse certa vez Paulo Maluf,”a
professorinha não deve gritar por salário, mas achar um marido mais eficiente” e não ser
considerado machist a.
Podemos resumir, simplificadamente, os principais traços de nossa violência social
considerando a sociedade brasileira oligárquica, autoritária, vertical, hierárquica,
polarizada entre a carência e o privilégio e com bloqueios e resistências à instituição
dos direitos civis, econômicos, sociais e culturais.
Nossa sociedade conheceu a cidadania através de uma figura inédita: o senhor (de
escravos)-cidadão, e concebe a cidadania com privilégio de classe, fazendo-a ser uma
concessão da classe dominante às demais classes sociais, podendo ser-lhes retirada quando
os dominantes assim o decidirem. O caso da mídia contra a Ministra Matilda exprime
exatamente essa idéia de cidadania concedida e retirada ao sabor dos interesses dos
dominantes. Pelo mesmo motivo, no caso das camadas populares, os direitos, em lugar de
aparecerem como conquistas dos movimentos sociais organizados, são sempre apresentados
como concessão e outorga feitas pelo Estado, dependendo da vontade pessoal ou do arbítrio
do governante.
Em nossa sociedade, as diferenças e assimetrias sociais e pessoais são imediatamente
transformadas em desigualdades, e estas, em relação de hierarquia, mando e obediência. Os
indivíduos se distribuem imediatamente em superiores e inferiores, ainda que alguém
superior numa relação possa tornar-se inferior em outras, dependendo dos códigos de
hierarquização que regem as relações sociais e pessoais. Todas as relações tomam a forma
da dependência, da tutela, da concessão e do favor. Isso significa que as pessoas não são
vistas, de um lado, como sujeitos autônomos e iguais, e, de outro, como cidadãs e,
portanto, como portadoras de direitos. É exatamente isso que faz a violência ser a regra
da vida social e cultural. Violência tanto maior porque invisível sob o paternalismo e o
clientelismo, considerados naturais e, por vezes, exaltados como qualidades positivas do
“caráter nacional”.
Nela, as leis sempre foram armas para preservar privilégios e o melhor instrumento para a
repressão e a opressão, jamais definindo direitos e deveres concretos e compreensíveis
para todos. Essa situação é claramente reconhecida pelos trabalhadores quando afirmam que
“a justiça só existe para os ricos”. O Poder Judiciário é claramente percebido como
distante, secreto, representante dos privilégios das oligarquias e não dos direitos da
generalidade social. Para os grandes, a lei é privilégio; para as camadas populares,
repressão. A lei não figura o pólo público do poder e da regulação dos conflitos, nunca
define direitos e deveres dos cidadãos porque, em nosso país, a tarefa da lei é a
conservação de privilégios e o exercício da repressão. Por este motivo, as leis aparecem
como inócuas, inúteis ou incompreensíveis, feitas para serem transgredidas e não para
serem transformadas – situação violenta que é miticamente transformada num traço
positivo, quando a transgressão é elogiada como”o jeitinho brasileiro”.
Em nossa sociedade, não existem nem a idéia nem a prática da representação política
autêntica. Os partidos políticos tendem a ser clubes privados das oligarquias locais e
regionais, sempre tomam a forma clientelística na qual a relação é de tutela e de favor.
É uma sociedade, conseqüentemente, na qual a esfera pública nunca chega a constituir-se
como pública, pois é definida sempre e imediatamente pelas exigências do espaço privado
(isto é, dos interesses econômicos dos dominantes). A indistinção entre o público e o
privado não é uma falha acidental que podemos corrigir, pois é a estrutura do campo
social e do campo político que se encontra determinada por essa indistinção.
É uma sociedade que por isso bloqueia a esfera pública da opinião como expressão dos
interesses e dos direitos de grupos e classes sociais diferenciados eou antagônicos. Esse
bloqueio não é um vazio ou uma ausência, mas um conjunto de ações determinadas que se
traduzem numa maneira determinada de lidar com a esfera da opinião: os mass media
monopolizam a informação, e o consenso é confundido com a unanimidade, de sorte que a
discordância é posta como ignorância ou atraso.
As disputas pela posse da terra cultivada ou cultivável são resolvidas pelas armas e
pelos assassinatos c landestinos. As desigualdades econômicas atingem a proporção do
genocídio. Os negros são considerados infantis, ignorantes, safados, indolentes, raça
inferior e perigosa, tanto assim, que numa inscrição gravada até há pouco tempo na
entrada da Escola de Polícia de São Paulo dizia: “Um negro parado é suspeito; correndo, é
culpado”. Os índios, em fase final de extermínio, são considerados irresponsáveis (isto
é, incapazes de cidadania), preguiçosos (isto é, mal-adaptáveis ao mercado de trabalho
capitalista), perigosos, devendo ser exterminados ou, então, “civilizados” (isto é,
entregues à sanha do mercado de compra e venda de mão-de-obra, mas sem garantias
trabalhistas porque “irresponsáveis”). Os trabalhadores rurais e urbanos são considerados
ignorantes, atrasados e perigosos, estando a polícia autorizada a parar qualquer
trabalhador nas ruas, exigir a carteira de trabalho e prendê-lo “para averiguação”, caso
não esteja carregando identificação profissional (se for negro, al ém de carteira de
trabalho, a polícia está autorizada a examinar-lhe as mãos para verificar se apresentam
“sinais de trabalho” e a prendê-lo caso não encontre os supostos “sinais”). Há casos de
mulheres que recorrem à Justiça por espancamento ou estupro, e são violentadas nas
delegacias de polícia, sendo ali novamente espancadas e estupradas pelas”forças da
ordem”. Isto para não falarmos da tortura, nas prisões, de homossexuais, prostitutas e
pequenos criminosos. Numa palavra, as classes populares carregam os estigmas da suspeita,
da culpa e da incriminação permanentes. Essa situação é ainda mais aterradora quando nos
lembramos de que os instrumentos criados durante a ditadura (1964-1975) para repressão e
tortura dos prisioneiros políticos foram transferidos para o tratamento diário da
população trabalhadora e que impera uma ideologia segundo a qual a miséria é causa de
violência, as classes ditas “desfavorecidas” sendo consideradas potencialmente violentas
e criminosas.
É uma sociedade na qual a estrutura da terra e a implantação da agroindústria criaram não
só o fenômeno da migração, mas figuras novas na paisagem dos campos: os sem-terra,
volantes, bóias-frias, diaristas sem contrato de trabalho e sem as mínimas garantias
trabalhistas. Bóias-frias porque sua única refeição – entre as três da manhã e as sete da
noite – consta de uma ração de arroz, ovo e banana, já frios, pois preparados nas
primeiras horas do dia. E nem sempre o trabalhador pode trazer a bóia-fria, e os que não
trazem se escondem dos demais, no momento da refeição, humilhados e envergonhados.
É uma sociedade na qual a população das grandes cidades se divide entre um “centro” e uma
“periferia”, o termo periferia sendo usado não apenas no sentido espacial-geográfico, mas
social, designando bairros afastados nos quais estão ausentes todos os serviços básicos
(luz, água, esgoto, calçamento, transporte, escola, posto de atendimento médico).
Condição, aliás, encontrada no “centro”, isto é, nos bolsões de pobreza, os cortiços e as
favelas. População cuja jornada de trabalho, incluindo o tempo gasto em transportes, dura
de 14 a 15 horas, e, no caso das mulheres casadas, inclui o serviço doméstico e o cuidado
com os filhos.
É uma sociedade que não pode tolerar a manifestação explícita das contradições,
justamente porque leva as divisões e desigualdades sociais ao limite e não pode
aceitá-las de volta, sequer através da rotinização dos “conflitos de interesses” (à
maneira das democracias liberais). Pelo contrário, a classe dominante exorciza o horror
às contradições produzindo uma ideologia da indivisão e da união nacionais, a qualquer
preço. Por isso recusa perceber e trabalhar os conflitos e contradições sociais,
econômicas e políticas enquanto tais, uma vez que conflitos e contradições negam a imagem
mítica da boa sociedade indivis a, pacífica e ordeira. Contradições e conflitos não são
ignorados e sim recebem uma significação precisa: são considerados sinônimo de perigo,
crise, desordem e a eles se oferece uma única resposta: a repressão policial e militar.
Nela vigora o fascínio pelos signos de prestígio e de poder, como se observa no uso de
títulos honoríficos sem qualquer relação com a possível pertinência de sua atribuição, o
caso mais corrente sendo o uso de “Doutor” quando, na relação social, o outro se sente ou
é visto como superior (“doutor” é o substituto imaginário para os antigos títulos de
nobreza); ou como se observa na importâ ncia dada à manutenção de criadagem doméstica,
cujo número indica aumento de prestígio e de status, etc..
A desigualdade salarial entre homens e mulheres, entre brancos e negros, a exploração do
trabalho infantil e dos idosos são consideradas normais. A existência dos sem-terra, dos
sem-teto, dos desempregados é atribuída à ignorância, à preguiça e à incompetência dos
“miseráveis”. A existência de crianças de rua é vista como “tendência natural dos pobres
à criminalidade”. Os acidentes de trabalho são imputados à incompetência e ignorância dos
trabalhadores. As mulheres que trabalham (se não forem professoras, enf ermeiras ou
assistentes sociais) são consideradas prostitutas em potencial e as prostitutas são tidas
como degeneradas, perversas e criminosas, embora, infelizmente, indispensáveis para
conservar a santidade da família.
A sociedade brasileira está polarizada entre a carência absoluta das camadas populares e
o privilégio absoluto das camadas dominantes e dirigentes, bloqueando a instituição e a
consolidação da democracia.
4. Democracia: criação de direitos
De fato, uma sociedade é democrática quando institui algo profundo, que é condição do
próprio regime político, ou seja, quando institui direitos. Essa instituição é uma
criação social, de tal maneira que a atividade democrática realiza-se socialmente como
luta social e, politicamente, como um contra-poder social que determina, dirige,
controla, limita e modifica a ação estatal e o poder dos governantes. Fundada na noção de
direitos, a democracia está apta a diferenciá-los de privilégios e carências.
Um privilégio é, por definição, algo particular que não pode generalizar -se nem
universalizar-se sem deixar de ser privilégio. Uma carência é uma falta também particular
ou específica que desemboca numa demanda também particular ou específica, não conseguindo
generalizar-se nem universalizar-se. Um direito, ao contrário de carências e privilégios,
não é particular e específico, mas geral e universal, seja porque é o mesmo e válido para
todos os indivíduos, grupos e classes sociais, seja porque embora diferenciado é
reconhecido por todos (como é caso dos chamados direitos das minorias).
Uma das práticas mais importantes da política democrática consiste justamente em
propiciar ações cap azes de unificar a dispersão e a particularidade das carências em
interesses comuns e, graças a essa generalidade, fazê-las alcançar a esfera universal dos
direitos. Em outras palavras, privilégios e carências determinam a desigualdade
econômica, social e política, contrariando o princípio democrático da igualdade, de sorte
que a passagem das carências dispersas em interesse comuns e destes aos direitos é a luta
pela igualdade. Avaliamos o alcance da cidadania popular quando tem força para desfazer
privilégios, seja porque os faz passar a interesses comuns, seja porque os faz perder a
legitimidade diante dos direitos e também quando tem força para fazer carências passarem
à condição de interesses comuns e, destes, a direitos universais.
É neste contexto que a práxis da ministra Matilde precisa ser percebida e compreendida. É
inconcebível que seu papel na instituição da democracia no Brasil possa ser diminuído ou
contestado seja lá por quem for e muito menos pelos agentes da violência
institucionalizada neste país.
Marilena Chaui é filósofa e professora da Faculdade de Letras e Ciências Humanas da USP (FFLCH).
PROUNI
Creio que a Sra. esteja equivocada quanto ao PROUNI, uma vez que ele não favorece somente “raças” mas sim pessoas sem condições FINANCEIRAS… independentemente de sua cor e etc..
Grata,
Maui Zanon