“O Brasil não é um terreno aberto onde nós pretendemos construir coisas para o nosso povo. Nós temos é que desconstruir muita coisa.” (J. Bolsonaro, março de 2019 em Washington)
Em seus mal escritos e mal lidos discursos de vitória e de posse, Bolsonaro afirmou que honraria e respeitaria a CF-1988… Conversa mole para boi dormir, pois já em seu primeiro ano de (des)governo, o que vinha sendo a morte lenta da CF-1988, rapidamente tomou a forma de morte súbita. É bem verdade que muito contribuíram para tanto a postura vendida da grande mídia, a placitude e a tibieza do STF, suposto guardião da Constituição, e o protagonismo do Legislativo comandado por Maia, que conseguiu articular ampla maioria parlamentar em torno de si e das propostas liberais e fundamentalistas de Guedes. Há certo consenso entre analistas políticos que se dependesse de Bolsonaro e sua trupe governamental e parlamentar, pouco ou nada dessa agenda teria avançado com tamanha rapidez, abrangência e profundidade pelo Congresso Nacional.
Tanto a aprovação da Reforma da Previdência como as propostas que agora gravitam em torno da Reforma Administrativa do Estado, representam o golpe final no lento, gradual e sempre inseguro processo histórico de institucionalização da república, da democracia e do desenvolvimento no Brasil. E isso se deve, basicamente, ao fato de que a premissa de todas as reformas está errada dos pontos de vista teórico e histórico (1).
A premissa liberal-fundamentalista afirma que o gasto público real (mas nada contra o financeiro) seria a fonte de todos os males nacionais. Sob o mantra de que o Estado brasileiro gasta muito e gasta mal se esconde a razão de fundo e o objetivo último de toda e qualquer medida desse (des)governo desde o princípio. Apesar do discurso oficial gastar saliva e power point (pois nem textos se escrevem mais para defender ou fundamentar esses arroubos liberais!), o fato é que são pífias ou inexistentes as preocupações com o desempenho governamental (setorial ou agregado) ou com a melhoria das condições de vida da população brasileira, esta, aliás, vista ou como inimigo interno ou como empecilho à acumulação de capital. Acumulação financeira, desde logo, pois é a única que prescinde do consumo e bem-estar real da população para se realizar.
Nesse sentido, é preciso ter claro que o que está em jogo no atual contexto nacional não são, simplesmente, reformas paramétricas a ajustar, ao gosto liberal, a estrutura e o modo de funcionamento do Estado brasileiro em suas relações com os mercados e com imensos segmentos de populações aqui residentes. Trata-se, desde logo, de um amplo conjunto de diretrizes ideológicas e medidas governamentais a transformar radicalmente, estruturalmente, qualitativamente, enfim, de maneira paradigmática, a natureza e o funcionamento do Estado em suas relações com a sociedade e com os mercados capitalistas atuantes em território nacional.
Diferentemente das ondas anteriores de reformas econômicas ou administrativas vivenciadas pelo país, trata-se agora de uma transformação sem precedentes na história republicana brasileira. Ela se caracteriza por ser, ao mesmo tempo, abrangente (no sentido de que envolve e afeta praticamente todas as grandes e principais áreas de atuação governamental), profunda (no sentido de que promove modificações paradigmáticas, e não apenas paramétricas, nos modos de funcionar das respectivas áreas) e veloz (no sentido de que vem se processando em ritmo tal que setores oposicionistas e mesmo analistas especializados mal conseguem acompanhar o sentido mais geral das mudanças em curso). Essas três características, por sua vez, apenas se explicam pelo contexto e estado de exceção a que estão submetidas as instituições, os poderes, a grande mídia, a política, a economia e a própria sociedade (des)organizada desde o golpe parlamentar-judicial-midiático implementado no Brasil desde 2016.
É somente em função disso que se pode entender a ousadia (e até aqui, o sucesso relativo) do projeto liberal-fundamentalista em seguir implementando, sem maiores resistências ou desavenças, a sua agenda disruptiva, entendida em dupla chave de análise. Em primeiro lugar, a atual agenda liberal é disruptiva em relação ao passado, pois em termos históricos, frente à própria trajetória brasileira, diferentemente das ondas anteriores de reformas econômicas e administrativas, e a despeito das enormes diferenças entre elas, não há no projeto liberal-fundamentalista qualquer perspectiva de construção nacional ou de fortalecimento do Estado para este fim. Isto é, não há referências claras ao desenvolvimento da nação como objetivo último de suas reformas, mas tão somente entendimento de que a consolidação e a valorização capitalista de mercados autorregulados poderia engendrar algum tipo de “desenvolvimento”, que em termos do liberalismo econômico em voga significa coisas como maximização das rentabilidades empresariais de curto prazo, crescimento microeconômico eficiente dos empreendimentos etc.
Em segundo lugar, a agenda liberal atual é também disruptiva em relação ao futuro, pois ao pretender alterar de forma estrutural o modo pelo qual a classe trabalhadora deve doravante se comportar e agir para se inserir e sobreviver nos mundos do trabalho e da proteção social, vale dizer, baseada em condições e circunstâncias estritamente individuais e tremendamente assimétricas ou desiguais para tanto, a dita agenda promete promover mudanças paradigmáticas – para pior – nas formas de sociabilização básica entre as pessoas, em todas as fases de suas vidas, e em suas capacidades e possibilidades de sustentação e reprodução das condições mínimas de sobrevivência ao longo do tempo, com reforço sem precedentes do individualismo como forma predominante de conduta e do consumismo como forma predominante de realização pessoal.
Pois para viabilizar tal projeto em sua envergadura, há, portanto, ao menos sete dimensões a serem destacadas para entender melhor o processo em curso de desmonte do Estado brasileiro e da própria CF-1988, a saber:
1. Subalternidade Externa;
2. Inversão e Reversão do Estado Democrático de Direito;
3. Privatização do Setor Produtivo Estatal;
4. Privatização de Políticas Públicas Rentáveis;
5. Privatização das Finanças Públicas;
6. Assédio Institucional no Setor Público;
7. Reforma Administrativa:
a) redução de estruturas, carreiras e cargos,
b) redução de remunerações e do gasto global com pessoal,
c) avaliação de desempenho para demissão, e
d) cerceamento das formas de organização, financiamento e atuação sindical.
Todos esses aspectos serão tratados, um a um, aqui nessa coluna, com dados e argumentos que as fundamentam, sejam bem-vindos e bem-vindas, até o próximo.
imagem: ciranda.net
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(1) Para a crítica teórica e histórica acerca da fundamentação liberal, ver os artigos da série Mais Brasil ou Austericídio? Disponíveis em Afipea
José Celso Cardoso Jr é Doutor em Economia pelo IE-Unicamp, PHD em Governo e Políticas Públicas pelo IGOP-UAB. Desde 1997 é Técnico de Planejamento e Pesquisa do IPEA e desde 2019 é Presidente da Afipea-Sindical, condição na qual escreve este artigo. As opiniões, erros e omissões são responsabilidade do autor.
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