Amores pós-modernos na pandemia

Eros dormiu após o almoço sertanejo. E sonhou que era outro homem. Havia dissolvido os hábitos culturais urbanos e se transformou em personagem do campo. Acordava cedo para tirar leite das cabras. Carregava os baldes. Enchia os litros para consumo humano e levava a maioria para a os tanques da queijaria.

Com Artemísia aprendeu a técnica de cortar o leite com o espinho da palma de Santa Rita, técnica importada da Serra da Estrela, em Portugal. Os queijos da Fazenda Santa Fé tinham uma consistência mais macia do que a maioria dos queijos da região.

Os raios de sol pela fresta do telhado o libertam do sonho. Eros levanta -se, escova os dentes, lava o rosto e veste uma sunga para o banho na curva do rio. Também veste calça de brim, camisa fresca de mangas compridas e botas de cano médio. Receia do sol da tarde. Por isso, usa protetor solar nos braços, rosto e peitoral.

Ao sair encontra Artemísia à sua espera. A mesa estava posta com suco de manga rosa gelado, queijo, bijus de tapioca e sequilhos. Sentam-se e se deliciam com o lanche da tarde, enquanto conversam sobre o passeio e o trabalho noturno para seleção das obras da exposição virtual.

As montarias estavam arreadas no mourão na frente da casa. Há tempo Eros não cavalgava. Artemísia sabia disso. Com extremo cuidado escolheu um dócil marchador para o amigo. No caminho mostrava e explicava alguns pontos de referência da propriedade. Por exemplo, o estábulo dos caprinos, a queijaria e a reserva florestal que ocupava 1/3 da propriedade. Graças à reserva florestal os olhos d’agua não secavam, mesmo nos verões mais intensos.

No dia seguinte visitariam a queijaria administrada pelo filho Avaré, engenheiro químico que fez mestrado em engenharia de alimentos na Unicamp e estagiou na França e Portugal, para se especializar na produção de queijos.

Amana, a filha gêmea, é veterinária e cuida dos animais da fazenda Santa Fé e de algumas propriedades vizinhas. Especializou-se em homeopatia veterinária. A produção controlada de queijos da propriedade segue protocolos ecológicos da União Europeia e possuem certificados de produto orgânico.

Depois de 15 minutos de cavalgada chegam ao destino do banho refrescante. Eros encantou-se com a curva do rio João de Barro. A água corre em movimentos sinuosos do alto da serra e forma um poço de 3 metros de profundidade média, cercado por árvores frutíferas, palmeiras e um bambuzal à jusante. No silêncio ouvem e distinguem a sinfonia das águas, do vento, das folhas e dos pássaros.

Artemísia salta na água fria. Eros observa por um tempo até ganhar coragem para o mergulho. Estava no céu! Poço frio e companhia fabulosa. Brincaram de atirar a água uma no outro e um na outra. Sorridentes e felizes cavalgaram de volta à sede da fazenda. Chegaram felizes e famintos. Em meia hora o jantar seria servido. Na sequência começariam a trabalhar na seleção dos quadros para a exposição virtual.

Enquanto toma banho, relembra suco de manga e o trajeto do passeio. Cantarola Morena tropicana, de Alceu Valença e Vicente Barreto.

“Da manga rosa
Quero o gosto e o sumo
Melão maduro, sapoti, juá
Jabuticaba teu olhar noturno
Beijo travoso de umbu-cajá

Pele macia
Ai é carne de caju
Saliva doce, doce mel, mel de uruçu
Linda morena fruta de vez temporana
Caldo de cana-caiana
Vem me desfrutar
Linda morena fruta de vez temporana
Caldo de cana-caiana
Vou te desfrutar

Morena tropicana
Eu quero teu sabor
Ai, ai, ioiô, ioiô (2x)

O jantar foi magnífico. A apoteose consistiu em café torrado na cozinha de casa. O pó tinha sido obtido do pilão de madeira, que convive há três gerações na família Furtado. Para Eros tudo era motivo de aprendizagem, entusiasmo e admiração.

Dirigiram-se ao escritório/ateliê e puseram-se a trabalhar juntos. A primeira seleção contemplou os quadros fotografados pela anfitriã. Ocupação divertida, laboriosa, harmônica e criativa. De vez quando Afrodite regalava os dois com um copinho de cachaça artesanal orgânica, originada do pequeno alambique da fazenda.

Turbinados pela doce cachaça de cana caiana – envelhecida em tonel de umburana – riam de qualquer coisa que falavam ou gesticulavam.

O trabalho fluiu alegremente e rendeu além do esperado.

Nada menos do que dezesseis obras de cinco artistas foram selecionadas na primeira noite de labor. Se continuassem nesse ritmo a curadoria seria finalizada antes do prazo planejado. Então, disporiam de tempo para rever as escolhas e preparar comentários sintéticos de cada tela do catálogo, antes de encaminhar para Rosinha Lucena.

Despediram-se felizes, cansados e levemente chapados. Às 9 horas do dia seguinte iriam a queijaria para Eros conhecer o processo de criação dos quatro tipos de queijo da Fazenda Santa Fé.

Dormiram como pedras a ponto de não lembrarem se sonharam um sonho possível…

Adrô de Xangô
11/8/2020.

Imagem: ciranda.net

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