A paixão de Afrodite e Eros na pós-modernidade pandêmica

A ligação improvável entre a mocinha e o vovô transformou-se em forte relação de amor, carinho e sexo virtual. Afrodite sentiu mais ânimo para trabalhar e reinventar a pequena empresa de turismo do pai, praticamente destruída pela ausência de clientes durante a fase aguda da pandemia.

Eros remoçou e aumentou os cuidados com a saúde e a aparência desleixada, de que já havia renunciado para as tretas do coração e do tesão. Retomou a dieta esquecida no arquivo do computador; passou a se exercitar e caminhar pelos quatro cantos do ateliê/residência/chácara.

A paixão aumentou o desejo, a energia e a vitalidade de ambos. Contavam histórias picantes, falavam de fantasias sexuais e namoravam pelo Telegram. Afrodite ganhou o apelido carinhoso de Afro. Por sugestão de Eros, evoluíram para uma plataforma virtual. Da tela dos computadores namoravam de modo mais íntimo, intenso e virtual, mas sem tirar a roupa.

Numa dessas noites amorosas, Eros pediu para Afro mostrar os pés. Ele tinha fixação por pés femininos. Fotografou no cérebro e na real para pintar os pés sensuais da jovem estátua do amor sacralizada na cúpula da catedral dos desejos. A tela consistiria em surpresa para a deusa dos orgasmos revisitados e reificados.

A relação amorosa e sexual tornou-se obsessiva e fonte de muito prazer solitário e onírico. Eros tomou a iniciativa de propor um encontro, à medida em que João Pessoa começava a relaxar as medidas de isolamento social, tendo em vista a queda dos índices de contaminação.

A princípio, Afro não topou. Pediu um tempo para pensar. Refletiu e achou que valia a pela se ambos fizessem o teste da Covid-19. Após os resultados passariam por uma quarentena de 14 dias. Para quem ansiava pelo encontro depois de dois meses de namoro e descaração à distância, parecia que 14 dias seriam fichinha. Ledo engano do casal! Crescente ansiedade e angústia por um tempo que teimava em não andar.

Entretanto, as carícias e o ritual de amor e sexo incrementavam-se nas noites de solidão e aconchego imaginário. No décimo terceiro dia, ambos brincaram de Adão e Eva no frio paraíso das máquinas. Gostaram do que viram e se lambuzaram com uma mistura de gozo e chocolate, desde a Cordilheira dos Andes até as profundezas do Lago de Titicaca.

Combinaram que Afro iria ao ateliê/residência para ver a sua imagem na tela criada pelo talento afetivo de Eros. Foi um interminável dia para o nosso pintor. Deu um toque de cuidados e arrumação da casa, sem se descuidar dos aperitivos e da cerveja artesanal preferida por Afro.

No meio da tarde, já não se continha de ansiedade. Então recorreu a ouvir poemas de Mário Benedetti para relaxar, ou não. Enquanto tomava o sexto banho frio por volta das 17h45, ouvia:

Amor de tarde*

É uma pena você não estar comigo
quando olho o relógio e já são quatro
e termino a tela e penso dez minutos
e estico as pernas como todas as tardes
e faço assim para relaxar as costas
e estalo os dedos e arranco mentiras.

É uma pena você não estar comigo
quando olho o relógio e já são cinco
e eu sou uma palheta que mistura cores
ou duas mãos que pulam sobre pincéis
ou um ouvido que escuta o canto dos cardeais
ou um tipo que desenha rostos e lhes arranca as verdades.

É uma pena você não estar comigo
quando olho o relógio e já são seis.
Você podia chegar de repente
e dizer “e ai? e ficaríamos
eu com a mancha vermelha dos seus lábios
você com o traço roxo do meu pincel.

Adrô de Xangô
17/7/2020.

*Tradução livre e adaptação de poesia de Mário Benedetti, poeta e escritor uruguaio.

Imagem: Mauro Laforga.

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