Chamego, sim; covid, não!

Faz mais de duas décadas que Maria e Pedro (Cabeção para os chegados) vivem uma paixão descolada e avassaladora, na qual pontua imenso tesão e afinidade política, musical e afrorreligiosa.

Houve um tempo em que Cabeção arrastou as asas para casar. Dezenas de pedidos criativos, ousados e espirituosos. Alguns cheios de breguice. Apelou para os anjos e demônios. Maria resistiu. Rodou a baiana, deu um xeque-mate e se afastou. Mas o desejo e o cheiro de Pedro Cabeção nunca saíram da pele e da memória afetiva e sexual. Morria de vontade de abrir o sorriso, os braços, as pétalas da rosa do deserto e o coração valente…

Entretanto, é uma mulher altiva e decidida. Não, é não. Treze meses de castigo. Mais que suficientes para Cabeção entender o mal-dito popular: existe mulher para casar e mulher pra namorar. E mais: entre eles há o Marcelo, que desfruta de lugar maior na vida de Maria.

Retomaram o engate amoroso depois de encontro fortuito. Cabeção foi convidado pra animar meu aniversário, com um grupo de chorões e muitos doidões. Maria estava só: cantou, dançou e rodopiou. Cabeção meio sem graça mandou um torpedo. Maria escancarou o sorriso. Naquele bendito sábado retomaram o ó do borogodó!

Maria e Cabeção nunca passaram mais de uma noite juntos, embora façam planos de viagem que jamais realizarão. Definitivamente, não se trata de amor frugal. É permanente e visceral. Entre ambos predomina a intensidade carnal acima e além de qualquer estatuto moral. Rola uma vibração tão mágica que ambos berram e choram rios densos de orgasmo e prazer. No após pois descansam e dormem de valete até a lua alumiar a escuridão.

Em tempos de pandemia os encontros rarearam. Longa temporada sem namorar. O medo de contaminar ou ser contaminado, prevalecia. As conversas de Maria e Cabeção jamais tocam em assuntos íntimos. Só papo cabeça e de afrorreligião. Nem precisam.Têm consciência de que, a cada topada nas esquinas redondas dos corpos ardentes, rolarão beijos, abraços e carícias intermináveis. Sabem experimentar sem freios e contrapesos a farra virtuosa e saborosa da descaracão.

Cabeção é esforçado cozinheiro e arranha no cavaco. Maria canta, dança, reza e encanta. Os atuais encontros na casa de Cabeção são precedidos de cuidadoso ritual. Fazem teste de covid para assegurar que ninguém vai se contaminar. Sapatos altos na porta. Higienização de garrafas, pacotes, telefone e máscara. Banho, troca de roupa e sandálias havaianas da casa. Janelas escancaradas para circulação de ar.

Ele prepara o almoço. Maria cuida das entradas, da sobremesa e da decoração. Abrem um vinho espumante ou tranquilo. Sempre rosé, laranja ou branco, porque Maria não se dá bem com os tintos. Servem-se e brindam. Aninham-se em beijos e amassos poderosos ao som de blues, jazz ou MPB. Dançam. Mãos e línguas compõem árias voluptuosas. Às vezes acendem um baseado e se enroscam até a onda passar.

No penúltimo enlace não aguentaram o furor das preliminares. Foram pra cama e esqueceram a comida no forno. No meio do tchan seus olfatos inundaram-se pelo cheiro de peixe torrado. Cabeção saiu correndo para desligar o forno. Maria foi atrás. Sapecou um beijo no cangote do varão. E, assim, reacendeu as labaredas do chamego e reabriu as torneiras do tesão…

Adrô de Xangô
1°/12/2020.

Imagem: montagem ciranda.net

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