Guerras Narrativas: disputas sobre o saber da experiência no Neoliberalismo da Era Digital

Quais as potências e perigos das narrativas no contemporâneo?

A arte de narrar está em vias de extinção, isso nos dizia Benjamin ao deparar-se com os soldados de olhos vazios que voltavam da guerra, mudos de experiências comunicáveis (BENJAMIN, 1994). As sugestões de como continuar a história do mundo, oferecida pelas narrativas e suas indagações diante da experiência de existir, ficavam ocas diante dessa face do progresso científico, esse que terminou por elaborar os pesadelos dos campos de concentração e a guerra de destruição massiva de cidades com suas populações civis. “O tédio, esse pássaro do sonho que choca os ovos da experiência” (BENJAMIN, 1994, p. 204) não teria mais pouso diante desse barulho surdo. E por isso a narrativa, com suas narradoras e narradores, estava em vias de extinção.

Com o rearranjo das linhas abissais neocoloniais (SANTOS, 2007) – essa linha invisível bastante presente que separa as populações entre matáveis e não matáveis, utilizada como ferramenta e estigma nos processos de dominação, construída social, cultural e politicamente ao longo da marcha da História moderna – acompanhamos o deslocamento da guerra para dentro mesmo da produção da vida comum. Vemos assim um lento espalhar da destruição e do genocídio, com seus pesadelos e horrores, para dentro do cotidiano das sociedades. Essas fronteiras internas deflagram uma guerra contra os pobres e marginalizados no interior mesmo do corpo social de um Estado-nação, com consequências terríveis especialmente naqueles países considerados subdesenvolvidos – ou seja, aqueles ainda sob a égide de um colonialismo que não cessa de se reinventar – como o Brasil e demais países da América Latina.

A gestão do extermínio e controle armado de populações inteiras como modalidade de ponta do neoliberalismo, assegurada por seus lucrativos mercados de segurança e medo, transformaram o olhar oco dos soldados que voltavam da guerra no principal afeto social, ao mesmo tempo transmudado em principal mercadoria. Diante desse contexto, parece possível imaginar a arte de narrar em pior situação do que aquela vislumbrada por Benjamin diante dos horrores do seu tempo, a 1ª Guerra Mundial e a escalada terrível do fascismo.

No entanto acompanhamos o exato oposto com a chegada das novas tecnologias de comunicação: nunca na História se narrou tanto.

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imagem: Banksy. Stop and Search (2007) – Bethlehem, Palestina.

As grandes plataformas narrativas globalizadas

As mídias sociais, que ocupam ostensivamente as relações contemporâneas, embaralhando a virtualidade com a materialidade de maneira afetiva e real, nada mais são do que grandes plataformas narrativas, onde cada ‘usuário’ ou ‘usuária’ narra momentos do seu cotidiano de maneira compulsiva – seja por textos, imagens, vídeos, sons, ou uma mistura disso tudo.

Além de se auto narrar, as plataformas permitem o consumo de outras narrativas de outros usuários, sejam pessoas que se tenha proximidade no mundo material ou não. As narrativas consumidas podem ser, é até melhor que sejam, de pessoas de países e culturas distantes. Essa modalidade de narrativa, fruto dessas novas tecnologias de comunicação e informação, já nasce “globalizada”, dando uma sensação de pertencimento a uma grande comunidade global de narradoras e narradores cotidianos.

Mas como conciliar então essa contradição? Como é possível que tantas narrativas emerjam apesar dos horrores da guerra que ocupa os cotidianos? Seja na distância das capas de jornais e no medo do espaço público, para os privilegiados, ou em seus próprios corpos sangrando em suas comunidades, para os despossuídos da terra. O que contam essas narrativas mediadas entre os horrores da guerra do neoliberalismo e as multilinguagens das narrativas das redes sociais?

Em um primeiro vislumbre, essa contradição aponta um alerta e um sinal da violenta dominação a que estamos submetidos, onde nosso afeto mais íntimo foi colonizado por categorias de desejo sutilmente fabricadas. Uma captura da arte de narrar, conjurando seus perigos e limitando suas possibilidades sob a égide de uma fantasmagoria de pertencimento ao mundo neoliberal.

Estamos diante, talvez, da captura espetacular das sociedades contemporâneas, como aquela narrada por Guy Debord (DEBORD, 1997), onde tudo que era vivido diretamente transformou-se em representação espetacular, como “âmago do irrealismo da sociedade real” (DEBORD, 1997, p. 14), constituindo sua multidão de solitários narradores em um circuito de isolamento e dominação. Aqui, no ambiente das narrativas virtuais via plataformas relacionais das Big Techs, o narrador é um mentiroso que mentiu para si mesmo, degradando a vida (a sua própria) em um universo especulativo de escolhas já decididas. O espetáculo captura a narrativa dentro da sua enorme positividade, construindo um regime de ‘o que se narra é bom, o que é bom se narra’, erguendo uma aceitação passiva ao seu monopólio da aparência.

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Imagem: Banksy. I remember when all this was trees (2015) – Detroid, EUA

Estética Digital e a Melancolia do Real

Partindo dessa captura narrativa do poder hegemônica, presente em cada postagem nas redes sociais, em cada interação com pessoas e algoritmos, um desencontro acontece: o mundo narrado nessas mídias digitais não coincide com o mundo real, mas é antes a captura positivada da sua aparência espetacular. Mas o que isso quer dizer? Que aquele fragmento de vida narrado – por uma foto, um videozinho do tik tok, por um stiker de whatsapp, por um meme – é moldado tecnicamente para parecer extremamente positivo, radiosamente atrativo dentro dos critérios da imagem e da comunicação dos meios virtuais, bem distante do seu acontecimento real, quebradiço, descontinuado e sujo.

Esses critérios de positividade residem em uma apropriação da estética da publicidade e da indústria cultural – não à toa a maioria das selfs evoca esse padrão, com um acabamento típico do universo fashion da indústria da moda, por exemplo. Os aparatos tecnológicos ajudam nessa tarefa reprodutiva, definindo uma determinada técnica narrativa de contornos bem específicos. Todos dominam em alguma medida os enquadramentos e composições para a produção de uma foto com seu aparelho celular; as plataformas das mídias sociais oferecem filtros e edições para essas mesmas imagens, ampliando sua capacidade expressiva dentro desse campo técnico. Todos podemos sentir a sensação de habitar esse universo de glamour, beleza e aceitação.

Escolhemos pequenos recortes do cotidiano que se enquadram dentro dessa premissa espetacular de composição narrativa, aplicamos todo esse arsenal técnico e, pronto: postamos por nossa própria conta uma imagem-narrativa da nossa história sob forma de espetáculo, esperando avidamente o consumo dessa produção em formato de likes, corações e comentários. A narrativa como mercadoria espetacular da alma contemporânea, a “riqueza ilusória da sobrevivência ampliada, que é a base real da aceitação da ilusão geral no consumo das mercadorias modernas” (DEBORT, 1997, p. 33).

Selfies de encontros felizes devidamente enquadradas, paisagens idílicas de prédios sob o pôr do sol com o filtro correto, jantares coloridos e apetitosos, conselhos e declarações pessoais derivados de estratos de mercado ultra-sofisticados, narrativas de conquistas empreendedoras e amores descartáveis. Essas narrativas nos colocam diante de um artificial ilimitado que desarma o desejo vivo, uma falsificação ativa da vida social e suas experiências. (DEBORT, 1997, p. 45).

Esse embaralhamento entre a representação espetacular do mundo e o mundo realmente vivido traz uma espécie de melancolia de mundo generalizada, onde as experiências não encontram forma de se encarnar nas miragens narrativas espetaculares. A vida parece muito mais intensa nas postagens do Instagram ou numa troca de mensagens via WhatsApp do que nos seus contextos reais, cercados das sujeiras, violências e imprevistos que fazem afinal a realidade. Dessa melancolia do real talvez derivem grande parte dos padecimentos subjetivos e psíquicos que acometem grandes contingentes populacionais nos dias atuais. Seriam esses sinais do fim absoluto da possibilidade da narrativa? Ou justamente o seu oposto?

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Imagem: Banksy. Napoleon (2018) – Paris, França.

Narrativas de enfrentamento do espetacular na arte/educação

Estamos diante do desenho, precário e insuficiente certamente, do regime de verdade e sua conjuração de poderes que incidem sobre as narrativas, gerando um sofisticado e participativo aparato de controle.
Mas por que tanto esforço?

Por que essa busca desenfreada do domínio e proliferação de determinados campos narrativos, virtuais-reais? Qual a compreensão que embasa esse ponto de vista, de que a narrativa é sabidamente potente mas também perigosa, exigindo todo esse aparato de controle para submetê-la à produção espetacular desenfreada do lucro e da subjetivação? Onde mora o perigo das narrativas, aquilo que podemos potencialmente explorar na nossa luta contra os opressores e suas máquinas de violência, submissão e grana? De onde vem essa cisma de narrar as experiências como forma de escudo, mas também de espada, diante do neoliberalismo contemporâneo?

Nas frestas dos regimes de poder, as experiências e suas narrativas combatem e sobrevivem bravamente, como embarcações à deriva em busca de seu retorno impraticável para Ítaca. É possível destacar um exemplo fecundo dessa resistência narrativa no campo da arte-educação, onde narrar as experiências docentes figura como prática recorrente de pesquisa e enfrentamento. No universo da Educação, a narrativa contra hegemônica da experiência expressa uma disputa afetiva de outros modos de sonhar a escola, servindo de caminho para que professoras e professores teçam suas escritas e construções pedagógicas em diálogo explicito com seus cotidianos. Temos como um exemplo possível o Grupo de Pesquisa Arte e Formação de Educadores do Instituto de Artes da UNESP, coordenado pela Profa. Dra. Luiza Helena da Silva Christov, que tem como eixo central a narrativa como método para pesquisa e formação continuada de educadores, com especial apelo para aquelas e aqueles que lecionam na rede pública de ensino.

O saber da experiência é tomado como escudo para que as palavras narradas de educadoras e educadores componham uma constelação de teses e artigos, recortando certa potência cotidiana dos encontros e afetos relacionados ao ambiente escolar. Acredita-se na seguinte cisma: de que as narrativas carregam, sob sua forma de compartilhamento das experiências significativas do existir, as potências para o enfrentamento desse regime de verdade e dominação do capitalismo digital, do espetáculo espraiado para os sonhos e horizontes.

A busca apaixonada da arte de narrar que carrega o intuito deliberado de perturbar a sociedade espetacular, garimpando em suas narrativas as experiências de mundo que enfrentam seu regime de dominação, gestando outras possibilidades de existir dentro do movimento do real. Nessa busca, as qualidades da experiência se tornam essenciais para construir e gestar essas narrativas de enfrentamento, sonhando quem sabe outra sociedade possível, gestando e fazendo uma outra escola, só que agora, através da experiência radical da produção de conhecimento no interior pulsante de uma cultura escolar crítica.

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Imagem: Banksy. Follow Your Dreams Cancelled (2010) – Boston, EUA.

Os saberes da experiência e a cisma de narrar

A experiência é a bússola desse processo, a substância sobre a qual se narra, entendida aqui como aquilo que nos acontece, que nos toca, um gesto de interrupção no fluxo dos juízos, vontades e automatismos imperiosos do cotidiano. A experiência deixa nos sujeitos que a vivenciam, nas suas superfícies sensíveis, as marcas e rastros do seu acontecimento (LAROSSA, 2002). A experiência é assim movida por um padecimento afetivo com o acontecimento, uma abertura essencial para as categorias do existir, que implodem a positividade da anti-experiência espetacular.
Como nos diz Larrosa em seu conhecido texto Notas sobre a experiência e o saber da experiência:

““O sujeito da experiência tem algo desse ser fascinante que se expõe atravessando um espaço indeterminado e perigoso, pondo-se nele à prova e buscando nele sua oportunidade, sua ocasião. (…) A experiência é a passagem da existência, a passagem de um ser que não tem essência ou razão ou fundamento, mas que simplesmente “ex-iste” de uma forma sempre singular, finita, imanente, contingente.”” (LAROSSA, 2002, p. 25)

Com isso, a experiência implica uma relação com o mundo em que estamos imersos, um mundo em que assumimos a responsabilidade, que nos ocupa e com a qual nos preocupamos, um “estar-no-mundo como primeira unidade existencial”. (LAROSSA, 2018, p. 21). A experiência corporifica o vivido, que entrelaça em nossa corporalidade e subjetividade aquilo que nos passa, encarnando esse saber naquilo que somos, transformando o modo como nos relacionamos e produzimos a realidade. É a partir da experiência que construímos a emergência da reflexão crítica; é a interrupção do nosso modo-de-estar-no-mundo que possibilita esse desengate reflexivo, instigando e convidando a necessidade de pensar (LAROSSA, 2018).

Essa necessidade de pensar afetiva é o impulso necessário para o surgimento de uma narrativa, que é a tentativa de comunicar, na articulação de palavras e símbolos, os saberes da experiência, uma tradução-criação entre viver e pensar. Isso constitui a narrativa como uma experiência por si só ao mesmo tempo que se configura como reflexão sensível e crítica da experiência que se passou.

Citando novamente Larossa, mas em outro texto, Esperando não se sabe o quê: sobre o ofício de professor:
““Não se escreve sobre a experiência, mas sim a partir dela. O mundo não é somente algo sobre o que falamos, mas algo a partir de que falamos. É a partir daí, a partir do nosso ser-no-mundo, que temos algo para aprender, algo para dizer, algo para contar, algo para escrever.”” (LAROSSA, 2018, p. 23).

Ou algo para narrar. Voltando ao Larossa:
““Além disso, as palavras não apenas representam o mundo, mas também o abrem, não são apenas uma ferramenta, mas também um caminho ou uma força. Ou, ainda de outro modo, a linguagem como tato mais fino.”” (LAROSSA, 2018, p. 23)

Talvez desse tato fino, dessa busca por uma reflexão sensível sobre a substância da experiência, emerja a cisma de narrar a escola. A narrativa como elaboração viva de outras experiências interligadas que emergem do cotidiano escolar, assumido enquanto responsabilidade existencial daquelas e daqueles que o realizam. Da convicção de que o ofício do arte/educador ou da arte/educadora pode constituir constelações de experiências junto das e dos estudantes, construindo outras possibilidades de estar-no-mundo somadas as outras possibilidades de se sonhar esse mundo, e dentro dele, sonhar quem sabe a escola.

A cisma de que o conjunto dessas experiências pode constituir uma narrativa que demarca, inscreve e reinventa esses esforços cotidianos pela busca da escola e da sociedade que sonhamos, enfrentando a esmagadora máquina de empobrecimento das subjetividades e da vida do espetáculo neoliberal contemporâneo. A narrativa mesma, como artefato de enfrentamento e construção, o movimento ativo e sensível entre o pensar e o agir dentro da escola. Uma contação de história que congrega narrativas múltiplas das trajetórias e experiências dentro da singularidade de uma comunidade escolar específica.

Atento aos perigos e buscando suas potências, sigamos narrando a arte/educação, construindo seus momentos de possíveis, de pequenas e combativas utopias cotidianas, nossos moinhos de vento e delírios pedagógicos, para quem sabe, um dia, contarmos uma outra história de mundo e sociedade – menos desigual, menos violento, mais cheia de sonho, afeto e rebeldia.

Referências:
Benjamin, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994.
Debord, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.
Larossa, Jorge. Esperando não se sabe o quê: sobre o ofício de professor. Belo Horizonte: Autêntica editora, 2018.
Larossa, Jorge. Notas sobre a experiência e o saber da experiência. ANPEd, Revista Brasileira de Educação. Jan/Fev/Mar/Abr, nº19, 2002.
Santos, Boaventura de Sousa. Para além do pensamento abissais: das linhas globais a uma ecologia dos saberes. CEBRAP, Novos Estudos, nº 79, novembro, 2007.

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