A cor da fome é amarela, mas Carolina de Jesus tem o brilho azeviche que transcende o tempo

‘‘Carolina, Maria, Maria de Jesus, a cinderela, mulher negra que a gente não vê na TV…’’. Esse trecho da música gravada pelo Bloco Afro Ókánbí faz justa homenagem a uma mulher preta paradigma na literatura brasileira: Carolina Maria de Jesus.

O que é invisível pode ser poderosamente sentido, tal como o toque do agdavi ou da palma das mãos no couro dos atabaques: o rum, o rumpi e o lé. Ignorar uma potente existência é uma estratégia desesperada da branquitude para talvez adiar o que foi forjado para resplandecer como o metal de Ogum, no brilho da guerra, ao toque do Aderejá.

Embora tentem invisibilizar pessoas pretas, negando sua historicidade, marginalizando formas de vidas de ser e estar no mundo, resistência é um predicado que acompanha os descendentes da diáspora negra no Brasil e no mundo. Carolina de Jesus é um exemplo de disso, e a obra ‘‘Quarto de Despejo’’, é o seu Ilú, Agueré, Aderejá, Alujá… são todos os toques entoados para os Orixás, Inkisses e Voduns, de todas a nações, que despertam a alma e expressam o brilho ofuscante de cada pessoa preta.

Mas que um relato em um diário pessoal de uma mulher preta, mãe solteira, catadora de lixo e moradora da favela do Canindé, em São Paulo, tem-se uma pérola de qualidade nobre e análise sensivelmente ocular na forma literária. Aliás, as obras vividas por seus autores têm esta nota de riqueza analítica bem visceral.

A fome das pessoas marginalizadas e a estupidez do individualismo humano estão no olhar e nas linhas de Carolina. Para ela a “[…] tontura do álcool nos impede de cantar. Mas a da fome nos faz tremer. Percebi que é horrível ter só ar dentro do estômago”.

Matar a fome das pessoas vem antes de outras fomes imateriais, o próprio Jesus já tinha sacado isso no milagre da multiplicação dos peixes. A fome de respeito à condição de mulher, a fome de perspectiva de futuro, expressadas na violência doméstica e no alcoolismo presente no cotidiano dos habitantes do Canindé.

Em 1960, ao final de seus vinte diários que compõem a sua obra, Carolina de Jesus antecipou temas que estão atualmente nas pautas progressistas: a violência de gênero, a desigualdade social, moradia e fome, racismo e até a dependência química como forma de escapismo. Uma riqueza que permite diálogos com as ciências sociais e as aplicadas também, sobretudo aquelas em que alguns se prendem ao cego legalismo.

Carolina de Jesus é uma mulher preta para ser divinizada e evocada nos toques mágicos do Candomblé. Seu brilho azeviche transcende o tempo.

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imagem: Wikipedia

imagem capa: ciranda.net (Carolina de Jesus, Assinatura Carolina de Jesus, Carolina de Jesus assinando livros, Carolina de Jesus escrevendo na máquina datilográfica. Carolina de Jesus desenho

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