Hoje fui ao supermercado para as compras semanais. Na secção de frutas grande surpresa. Bandejas com sapoti para vender. Em 33 anos de residência em Brasília nunca encontrei sapoti em supermercados. Peguei uma bandeja com duas unidades e senti o aroma inconfundível penetrando nas minhas narinas. Cheiro e forma me transportaram à infância, quando esta e outras frutas eram colhidas do pé em nossos quintais ou em terrenos baldios.
Conferi o preço. Precisamente R$7,06 por um caqui. Muito caro! Indaguei com meus botões: estes sapotis são de ouro? Não resisti ao forte e inconfundível aroma e coloquei a bandeja no carrinho. Um dos sapotis está prestes a amadurecer. Sábado ou domingo será degustado e apreciado lentamente como uma iguaria presenteada pelos deuses e orixás.
O sapoti evocou belas recordações de uma infância dourada na Rua Pedra da Marca, uma rua estreita de terra batida que passou a ser chamada de Avenida Cardeal da Silva, quando foi asfaltada e inaugurada em 1970. A rua Pedra da Marca ligava a Federação ao Rio Vermelho e foi palco central das nossas brincadeiras de crianças e das aulas e dos castigos na Escola Particular Sagrado Coração de Jesus, onde estudei até finalizar a quarta série do curso primário em 1962.
Neste ano ouvi todos os jogos da seleção brasileira que foi bicampeã mundial, após vencer a Tchecoslováquia por 3 x1. Ouvindo e imaginando os dribles Garrincha, os passes precisos de Didi e os gols de Amarildo comecei a torcer pelo Botafogo de Futebol e Regatas, somando-se ao amor pelo Bahia induzido pelos presentes de tia Zininha.
Nos fundos do lado direito da Rua Pedra da Marca havia um terreno baldio com várias árvores. Uma delas era um imenso sapotizeiro. Na minha lembrança o sapotizeiro era uma árvore muito alta e frondosa. Floria na primavera e frutificava no fim do ano coincidindo com as chuvas de trovoada.
Éramos muito pequenos para subir no sapotizeiro que possuía mais de 8 metros de altura. Então, esperávamos o dia seguinte ao aguaceiro de verão para pegar sapotis caídos no mato. Eu, Babau, Litinho, Dão e Paulinho acordávamos cedo munidos de mochilas de pano para colher sapotis no matagal sob a copa do pé de sapoti. A operação consistia em selecionar os frutos que não estavam rompidos.
Cada um de nós coletava até 10 sapotis. Havia uma regra não escrita para não coletar mais. Deste modo, os meninos que acordavam mais tarde ainda podiam encontrar sapotis. Dão, que era um pouco mais velho, levava sapotis extras para dar de presente à Sônia. Esta sorria e agradecia o precioso presente. Dos 10 aos 15 anos foi cultivado o ritual de doação das frutas sem que trocassem uma palavra. Namoraram, casaram, tiveram 3 filhos e perdi o contato.
Ao chegarmos em casa limpávamos os sapotis e enrolávamos em jornal para aquecer e amadurecer mais rápido. Sapoti é um fruto leitoso. Por isso não pode ser comido antes de amadurecer. No processo de guarda o sapoti denuncia o amadurecimento pelo aroma inebriante. De tempos em tempos a gente retirava o papel jornal e conferia o grau de amadurecimento. Os bons eram lavados para serem consumidos no café da manhã.
E assim todo o verão esperávamos a temporada de chuvas para coletar sapotis que caiam devido aos fortes ventos e chuvas de açoite. Na minha memória esse processo durou dos 7 aos 10 anos de idade, quando mudei para o IAPI. Em fins de 1965 passei uns diais de férias de dezembro na casa de tia Zininha, na rua Pedra da Marca. Choveu muito. Acordei cedo, peguei uma mochila e fui até o terreno baldio coletar sopotis. O sapotizeiro tinha sido derrubado.
Naquele terreno que foi palco de nossos sonhos e brincadeiras de criança foram edificadas diversas casas com quintais pequenos, murados e sem árvores frutíferas. Fiquei muito triste, Naquele instante comecei a tomar consciência de que a urbanização carrega em seu ventre o processo de dominação do homem sobre a natureza e a vida de modo geral.
Enfim o sapoti vale o preço que está sendo cobrado, porque evocou a memória da mina de ouro que marcou definitivamente a minha infância Rua Pedra da Marca…
Imagem: Mundo Saudável
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