Amores pós-modernos na pandemia

Eros despertou cedo com o canto dos galos. Estava bem disposto para encarar um lugar onde tudo era novo, inclusive as mesuras e sorrisos largos de Artemísia. A higiene matinal sempre foi um ritual desde os sete anos de idade. Escovava até as unhas dos pés…

Não levantava da cama antes de meditar por vinte minutos. A meditação foi um hábito aprendido e construído desde que Vênus faleceu. Na paz e no silêncio foi capaz de se conectar com o universo, e superar o vazio e a dor da perda inesperada e irrecuperável.

Apesar das lembranças inevitáveis e relevantes Eros aprendeu, recentemente, que a liberdade é infinita a ponto de escancarar as janelas da vida para um novo amor. Não tem pressa. Entende que a pessoa certa surgirá no instante que tiver de aparecer. Nem um minuto antes, nem depois.

As 7h30 entra na sala e encontra Artemísia com um sorriso mais reluzente do que a estrela-d’alva na solidão do firmamento. Cumprimentam-se com caloroso e prolongado abraço. Olham-se nos olhos. A amiga o conduz pelas mãos para o café sertanejo, onde não faltam o cuscuz com carne seca e o aromático café torrado e pilado em casa.

Terminado o café, Eros lava o rosto mirando-se como se mirasse as mulheres de Atenas. Cuida de pentear cuidadosamente as esbranquiçadas melenas. Acorda do transe com uma leve batida na porta do quarto. Pega o chapéu panamá e sai correndo. É dia de conhecer o estábulo e a queijaria.

O jipe está estacionado desde que Eros chegou. O deslocamento nas áreas da fazenda é feito à cavalo. Chegam ao estábulo. A Santa Fé possuía um plantel de 1.250 cabras, 35 bodes e reprodutores e uns 300 filhotes com menos de 1 ano. Observa cada detalhe; ouve atentamente as explicações de Artemísia. Quando tem dúvidas faz perguntas. Realmente demonstra interesse em aprender o necessário naquele esplendoroso mundão desconhecido.

Entram no estábulo e seguem para o recinto de ordenha mecânica. Além dos dois empregados vê Amana, filha da sua amiga que cuida da saúde dos animais da fazenda. Cumprimentam-se com carinho. Há mais de dez anos não via a veterinária e mãe de um menino. Naquele tempo Amana era jovem e sonhadora estudante.

– Para que esta música new age, indaga Eros. É Loreena McKennitt?
– É a Loreena, tio. Usamos a música para as cabras relaxarem durante a ordenha. Na sequência elas descem a rampa para se alimentar.
– Por que se alimentam após a ordenha?
– Ao doar o leite as cabras perdem energia. Precisam de alimento e água para se recompor. A água contém uma vitamina natural. Segredo da casa desde os tempos de papai.
– Aritana era veterinário tradicional. Não é?
– Na verdade papai misturava conhecimento científico com a experiência aprendida na convivência com outros proprietários e nas feiras agropecuárias.

-Os olhos de Amana enchem-se de lágrimas. Perdeu o pai naquele acidente bobo, quando ela e o irmão tinham apenas 16 anos. Rapidamente, Artemísia acolhe Amana nos braços. Eros permanece em silêncio admirando aquele gesto de infinito afeto entre mãe e filha.

Separam-se. Artemísia convida Eros para ver o tratamento do leite seguindo todos os preceitos higiênicos, técnicos e científicos. Por gravidade o leite é armazenado no tanque de resfriamento e corte. A partir desta etapa Aimará coordena o processo de fabricação de quatro diferentes tipos de queijo: arupiara, camembert, reino com ervas regionais e crottin. Estão fazendo testes para analisar a viabilidade de produzir o queijo feta, mediante mistura de ervas da caatinga.

A produção diária é 800 peças de queijos, as quais são armazenadas de 2 a 4 meses antes da comercialização. Todo o processo de produção é mecanizado. A temperatura é controlada de forma permanente nos tanques resfriamento, de fermentação e no depósito de maturação. Eros é visitante interessado e curioso. Faz diversas perguntas aos empregados da queijaria.

No fim da visita ocorre uma sessão de degustação dos diferentes queijos prontos para embalagem e comercialização. Eros se encanta com a textura, coloração e sabor de cada um dos queijos. Encomenda 3 de cada tipo para para ele os filhos, quando retornar à João Pessoa.

O trabalho de seleção das telas fluía de modo agradável e divertido. Ambos possuem uma visão muito próxima na apreciação das obras de arte. Entre pingas e telas iniciam sutil aproximação com leves carícias e olhares, sem emissão de palavras.

Três noites foram suficientes para a primeira seleção. Disporão de tempo para rever as escolhas e escrever textos explicativos de cada tela selecionada. Os textos sucintos são essenciais para apresentação do catálogo que o professor Cidoval vai redigir. Também fará a revisão dos textos escritos por Artemísia e Eros.

Na sexta feita ocorreu um almoço de família, com a presença de Amana e Aimará. Durante o divertido almoço, turbinado com licores e pingas, os gêmeos contaram várias estórias do passado. Reportaram as brincadeiras com Sagitárius e Nêmesis nos tempos de crianças e adolescentes.

Depois do almoço Aimará fala sobre a proposta de seu Bentinho para vender a fazenda situada acima da Santa Fé. Diz que o preço está ótimo, mas a família não tem caixa suficiente para fazer a compra, bem como construir as benfeitorias necessárias para integrar as propriedades. Eros pergunta o preço. Indaga se é possível desconto para uma aquisição à vista?
– Como assim, tio? Nós não temos dinheiro suficiente e não queremos tomar empréstimos bancários.
– Eu entendi. E se eu entrasse com 50% do valor da compra e mais 50% dos investimentos em benfeitorias.
– Deste jeito dá para adquirir.
– Então peça um desconto de 10%. Se o proprietário aceitar, fechamos o negócio. Tenho uma poupança que está rendendo pouco. Há tempo pensava comprar uma terra no semiárido para implantar uma reserva florestal. É um sonho que acalento desde que conheci o Instituto Terra na Fazenda Bulcão, do casal Sebastião Salgado e Lélia Warnick.
– Ótima ideia, tio. Vou conversar com seu Bentinho. Depois informo a vocês.

Tomaram o sagrado cafézinho após o almoço. Amana e Avaré saíram para supervisionar os trabalhos de criação das cabras e da queijaria ecológica. Artemísia foi descansar. Eros deitou na rede pensando na compra e no que fazer com a sua parte na nova fazenda. Ligou para os filhos e contou a novidade. Eles acharam que podia ser uma boa. Os netos teriam experiência de vida no campo. Aprenderiam a andar a cavalo, nadar no Rio João de Barro e se relacionar com a natureza.

Desde 2012 Eros alimentava o desejo de comprar uma propriedade rural para implantar uma reserva particular do patrimônio natural (RPPN). Gostaria que Artemísia e filhos. Na parcela destinada à exploração econômica construíriam uma casa para abrigar os filhos, netos e amigos de passagem.

Artemísia acordou e convidou Eros para o habitual banho na curva do rio. Selaram as montarias. Eros detalhou os planos de criação da RPPN l. Artemísia aquiesceu exultando de felicidade. Nadaram e mergulharam na água fria por mais de 50 minutos. Na saída abraçaram-se por longo tempo antes de secarem os corpos com as indefectíveis toalhas felpudas.

A parceria nas artes plásticas estava evoluindo para uma sociedade rural e um projeto de restauração e conservação ambiental. Ambos sentiam-se satisfeitos com a probabilidade. Em casa havia um recado de Aimará pedindo para retornarem. Seu Bentinho aceitou a proposta. Pediu um sinal de 20% por cento para garantir o negócio. Na segunda iriam ao banco para transferir o dinheiro, e ao cartório para assinar o contrato de compra e venda.

Foi um dia de grande surpresa e alegria apontando para a mudança de modo de vida, por meio de um projeto ambiental desafiador para melhor convivência com o semiárido nordestino.

– Artemísia, recorre a Mia Couto e destaca: “o sonho é o olho da vida”.

– Eros retruca com Mia Couto: “Se um dia me arriscar a um outro lugar, hei-de levar comigo a estrada que não me deixa sair de mim”.

Naquela noite de lua cheia sentam-se nas espreguiçadeiras da varanda. Enlaçam as mãos e fixam os olhares sonhadores no tapete de estrelas, em profundo respeito e silêncio.

Brasília, 18/8/2020.
Adrô de Xangô

Imagem: ciranda.net

  1. Confira todas as colunas:

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *