Mãe preta e suas memórias em tempos de pandemia

Hoje, dia 20 de junho, começo a escrever meu diário de quarentena. Do final ao início de uma história. Estou dizendo isso porque esse foi um dia muito marcante para mim. Então, gostaria de começar pelo Chá das Chicas [grupo terapêutico formado para e por mulheres, em Salvador, Bahia – procure saber!]. Desde o início da quarentena venho me condicionando a estar sempre com pensamentos positivos e acreditando que tudo isso irá passar. Mas quando digo ‘tudo isso”, não é somente a pandemia do corona vírus, é também sanar os meus medos, meus traumas, as mágoas, frustrações, enfim, todos os sentimentos e pensamentos negativos que cercavam o meu dia a dia. Esse que me remete a várias reflexões, às grandes marcas existentes, resistentes e comoventes! Daí relembro das dores, das perdas, do sentimento de impotência, das mágoas, raivas, as quais me adoeceram. Do que deveria ter feito no decorrer da vida e não realizei. Mas hoje estou tentando viver o presente, colocando uma pedra no passado, cada dor e cada sentimento em seu lugar, projetando o futuro.

Um futuro que permeia acompanhado de muita fé! Ah! Essa eu não abandono e nem sei o que seria de mim sem ela. Sem a companhia diária de minha mãe e santa Nanã, assim como de todos os Voduns (Orixás) que me ajudam e me movem no dia a dia, que me permitem vida, saúde e sabedoria. Bom, voltando ao dia de hoje… foi um dia que me fez colocar muitas coisas no lugar, muitos sentimentos e descontroles, foi um dia de auto cuidado. Chá das Chicas! Todas as vezes que participo fico muito feliz, me fortalece, me faz acessar algumas dores também, mas na forma mais saudável e sensível de sentir. Também faz perdoar-me, reconhecer a mulher que sou. Mulher negra, nascida em uma periferia, com todos os acessos de negação, sofrendo todos os tipos de discriminação, violência e racismo, vendo meus irmãos e amigos serem assassinados e ter que “compreender” a situação. Em um lar de muitas brigas e violências de todos os tipos, inclusive familiar. Das condutas abusivas e que por muitas vezes não nos damos conta – e tantas outras coisas que nos esperam na quebrada. Diria, muita treta! Então esse recolhimento, por causa da quarentena, me leva a dar esse mergulho na minha essência, no que verdadeiramente sou, na minha ancestralidade e em todas as peculiaridades.

Não nego que essa tem sido uma fase bem difícil, desafiadora e cercada de mistérios. Tudo é muito incerto, a única coisa que não é incerta é o racismo. A violência policial contra uma população – falida, apodrecida pelo sistema elitista e um sistema de corrupções e contradições; o Estado que mata sonhos e vidas negras como se fôssemos lixos e não seres humanos. Eu sou essa mulher que mesmo diante de tanta dor e sofrimento, renasço das cinzas, da lama, do limo. Do limo de Adelha Santana Limoeiro. Aquela que tinha sobrenome de Nanã, senhora Santana que também é dona do limo. Adelha mesmo não conhecendo sobre Nanã tinha características muito fortes, as quais se descreviam como as mesmas das filhas de Nanã. Aquela mulher que sofreu ao ver o corpo de seu marido desfalecido em cima da cama… da cama onde ele se deita com uma garota muito jovem. E, mesmo assim, sua esposa Adelha o salvou. Poderia eu, em outro momento, entender esse processo de forma que diria ao pé da letra que ela estava sendo besta. Mas hoje, compreendo que sabedoria não significa ser besta; ela estava bem com ela mesma e com a “velhice”, estava feliz consigo. Então, quando compreendemos o quanto é importante darmos para o outro o que queremos para nós, temos aí um diferencial, uma sabedoria e um amor, o nosso próprio amor! A personagem Adelha nem sabia que o próprio nome faria uma alusão ao nome de Nanã, essa linda e poderosa santa, minha mãe!

Bom, citei esse trecho para fazer uma alusão ao livro de Conceição Evaristo: Insubmissas Lágrimas de Mulheres. Esse tem sido meu companheiro e incentivador também. Durante muito tempo ele me leva a esse lugar de comparações, de superações, quando leio sobre histórias de mulheres – sofridas, mas também guerreiras e transformadoras de suas próprias histórias.

Tenho duas filhas, a mais velha que se chama Abayomi Mawusi e a caçula que se chama Ana Flor Mawusi. Filhas essas que me trazem muito amor, incentivo, vontade de viver, que me remetem a enxergar o mundo com outros olhos, além de cores e formas. Apesar de tantas dores e medos que me acompanharam nas gestações, hoje vivo uma superação e o amor de estar com elas. Tem sido desafiador também conviver diariamente com as tristezas que as cercam, por não estarem indo pra escola, por não poder ir passear e até ir visitar as pessoas que amamos. Tem sido desafiador esse novo modelo de vida, uma vida que tem sido muito mais atrás das telas e nesse contexto percebo as transformações, os choros, os nervosos, as angústias e por muitas vezes a escuta do medo, a interpretação no rostinho de cada uma delas.

Então percebo que além de mim e das minhas problemáticas existem elas e todos os sentimentos que nos compõem. Tive também Ayana Maria, filha que gestei e, no parto, ela se foi, no final do ano de 2018, depois de 5 meses que tinha perdido minha mãe. Foram as piores dores que tive na vida, apesar de ter perdido, a muitos anos atrás, três irmãos e três sobrinhos. A dor de perder uma mãe e uma filha são incomparáveis. Hoje faço essa reflexão, pensando no quanto minha mãe deve ter sofrido tendo que enterrar meus irmãos, todos praticamente em menos de dois anos. E penso nas mínimas oportunidades que ambos tiveram. Me apego muito mais a minha fé, pois sei que essa foi a maior fuga que minha mãe achava para todos os momentos de dor e de angústia que deve ter sentido e vivido ao longo da vida.

Diante de tantas dores e privações, me encontro em um lugar de “privilégio”, pois tenho acesso a terapia e a outros tratamentos terapêuticos, esses que me dão suporte e que me ajudam no cotidiano, na construção de uma maternidade compreensiva, comunicativa, expressiva e que dentro desses contextos não me permitem passar despercebida dos problemas, mas também das soluções que me cercam. Dentro do contexto da pandemia, acho que estamos sendo convidados a reflexões diárias e a muitas formas de atenção para o nosso corpo e mente. Estamos vivendo muito próximos da morte, de tantas mortes… se conseguirmos perceber que muitas vezes é necessário morrer para renascer, então essa possibilidade nos remete a um olhar e um pensar diferentes. Podemos olhar com mais amor e pensar nas grandes e melhores formas de estar nesse mundo e de fazer parte desse corpo, tão singular e potencialmente transformador.

Imagem: Arquivo Pessoal

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