‘‘Você é o meu marido, ok?’’. Sem entender direito esta sentença, consenti com o novo ‘‘status’’civil, porque os signos estabelecidos entre amigos, em seus tons diferenciados, cumplicidades e suspense impunham o ‘‘sim’’, embora discordasse dos motivos determinantes.
Tratava-se de mais uma estratégia, que as mulheres usam, para evitar qualquer inconveniente, violência ou assédio futuro de um predador sexual ‘‘light’’ – se é que algum assédio pode ser assim taxado -; é o velho caso do estuprador que enxerga o único freio ao seu ímpeto na figura de outro homem real ou imaginário.
Esta ainda é a rotina de diversas mulheres, sorrir sem graça em meio a piadas constrangedoras e de cunho sexual, escolher a roupa que marque menos, ou que não delineie o decote… para que não sugira ao predador sexual um convite ao sexo fácil.
Carnaval em Salvador, um tradicional bloco de homens travestidos se notabiliza por violências contra as mulheres que não correspondem às respectivas investidas das ‘‘mucuranas’’, e aí tome insultos, ‘‘dedadas’’, tapas nas nádegas, partes íntimas… enfim, muitos estão longe da elegância e respeito que possui um verdadeiro – repito verdadeiro – Filho de Gandhy, como eu.
Ah propósito, recomendo a reportagem “Um viado nas Muquiranas: foram sete horas de insultos homofóbicos, tapas na bunda e até cantada’’, por Jorge Gauthier (procure no Google).
A questão é que tais condutas são relativizadas, eufemisticamente, e justificada como brincadeiras sem intenção, coisas de carnaval ou de homem diante de uma mulher provocante.
‘‘Esqueça isso’’, ‘’Suporte’’, ‘‘É seu pai…’’, ‘‘Eu preciso do emprego…’’. Muitas destas frases e outras já foram impostas as mulheres violentadas. É difícil ser mulher em uma sociedade em que o sucesso profissional, quando não questionado se foi por méritos sexuais, é sabotado quando não há correspondência aos desejos do estuprador.
Tal realidade se torna bem mais violenta com as mulheres negras, e nesse sentido, não há como dissociar raça de gênero, como bem aborda Carla Akotirene em sua obra ‘’Interseccionalidade’’, da coleção Feminismos Plurais. No mesmo sentir, Lélia Gonzalez ao trabalhar no artigo ‘’Racismo e Sexismo na cultura brasileira’’ as construções culturais das figuras da mulata e da mãe preta e as implicações desta dupla imagem.
As mulheres indígenas e negras foram vítimas dos estupros, seqüestros e alienações parentais, com a separação afetiva dos seus filhos, e este costume ainda em certa medida se estrutura nas senzalas dos apartamentos da classe média – o quartinho de empregada – para dar suporte aos assédios dos patrões e seus filhos, ou ainda se sustenta no ‘’sequestro consentido’’ de uma menina do interior, de família pobre, para ser criada lavando prato em trabalho escravo.
E assim a tolerância com o assassino e estuprador branco ocorre de forma velada e natural na sociedade brasileira, lembremos do estupro coletivo de uma adolescente pela banda de pagode baiano New Hit em 2012, as posições de alguns julgamentos do Poder Judiciário que criminalizam a vitima pela sua vida sexual, roupas e comportamentos e reproduz a violência do patriarcado, temperado com um toque racial.
Tenho observado um alvoroço em torno de um filme polonês intitulado ‘‘365 dias”, de pífio enredo, trilha sonora pior ainda, e mais que isso, romantiza a violência de gênero praticada por um homem branco. O protagonista “porretão” é um mafioso da pesada, que resolve seqüestrar uma mulher para convencê-la a se apaixonar por ele – seqüestro e cárcere privado, que bonitinho… A “Rapunzel” então ficará presa pelo período de um ano, quando será liberta se tal intento não se realizar. Que lindo, parece os casos de violência domésticas das nossas vizinhas que são aprisionadas e estupradas pelos companheiros, até que algo as liberte, como a morte.
Há, no filme, outra cena de sexo oral com uma ‘‘aeromoça’’ que trabalha no avião do mafioso. Remeteu-me as práticas que ocorrem nos gabinetes de secretarias de estados – lembram do ex-promotor da Bahia, lá da justiça e Direitos Humanos?-, igrejas e locais a la João de Deus.
Não consegui assistir até o final, dormir na cena do sorvete. Pode ser uma estratégia do diretor, começar ruim para ficar pior ou melhor, não sei… a minha crítica foi até onde meu “zoi” permitiu, e foi puxado.
Portanto, buscar algum mérito em tal obra cinematográfica é discutir se o Ki-suco de morango é feito da fruta. A grande questão é que de fato, com um apelo sexual barato, o filme naturaliza a violência de gênero praticada por um galã branco, e galera feminina está gostando.
Mas para quem achava graça de piada de mulher toda roxa que apanhava do marido, o Raimundão, no programa humorístico da Globo ‘’A Escolinha do Professor Raimundo” lá na década de 1990, não há como estranhar. Mas é revelador do que ainda é nossa sociedade.
Em 1915, nos Estados Unidos, “O nascimento de uma nação”, traz para telas da Casa Branca e do cinema o mito do negro estuprador, protagonizado por um homem branco em “black face”, que é morto pela Ku Klux Klan. Emmett Till, menino negro de 14 anos, foi linchado e morto, após ser acusado em 1955 de fazer comentários sexuais a uma mulher branca, os cinco jovens acusados equivocadamente – assistam “Olhos que condenam”-, em 1989, de cometer um estupro contra Patricia Meili no Central Park são frutos deste mito?
Creio que sim, e posso dizer que a comunicação da indústria de massa serve para irradiar conceitos, que relativizam o branco estuprador e fortalecem o mito presente em “O nascimento de uma nação”.
Eu aceitei o casório porque da posição privilegiada que o patriarcado me confere, protegeria uma amiga do potencial estuprador. Não foi a decisão mais correta. Contradiz o que está latente nas linhas acima. Tenho consciência que contribui para a manutenção da cultura do estupro neste curta-metragem, em que os personagens são todos negros.
Imagem: cartazes divulgação dos filmes 365 dias, O nascimento de uma nação e do documentário “um viado nas muquiranas”
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