O terceiro encontro da #partidA feminista estava previsto, antes da pandemia, para acontecer em Belo Horizonte. Começou on-line no último sábado, 20 de junho, reunindo 105 mulheres, do RJ, MG, DF, GO, PE e SP. A primeira roda do encontro nacional discutiu a conjuntura política frente ao movimento feminista e foi aberta por Flávia Tambor (MG), seguida da leitura de um poético texto de boas-vindas, por Cris Tolentino (MG). Mais duas rodas serão realizadas, nesta quinta e no próximo domingo. Construir uma democracia feminista, inclusive no processo de organização é o grande desafio da #partidA. Ocupar os espaços de poder é outro.
Lembradas e homenageadas no início do encontro, Marielle Franco, assassinada há mais de dois anos e Cristina Terribas, que nos deixou no ano passado. Ambas construtoras da #partidA feminista desde seu início. Existe muito orgulho da dimensão que tomou a luta de Marielle, a encarnação do feminismo da partidA por Marielle. O sonho de ser um partido político é de todas as partidAs. Enquanto não dá, as feministas vão ocupando os parlamentos e outros lugares nesta institucionalidade tão dominada pelo machismo branco, e hoje fundamentalista.
Conjuntura por corpos diversos
“#partidA é uma ideia que circula”, falou ao vivo da Europa Márcia Tiburi, filósofa, professora e hoje auto-exilada política devido fortes ameaças, a idealizadora desse movimento que atua como partido, em 2015. Com muita alegria política – uma prática que defende -, Marcia reafirmou o caráter da #partidA como um movimento de invenção e reinvenção. A filósofa foi veemente contra o capacitismo, racismo, machismo, genocídio. “Contra o conluio desse poder do mal, só nós feministas podemos colocar um outro mundo possível”.
Schuma Schumaher, da AMB (Articulação de Mulheres Brasileiras) e feminista histórica, trouxe também a presença de Nilceia Freire, apresentou uma avaliação da conjuntura política aplaudida por todas. “Nos últimos tempos, temos diariamente ameaças de colocarem os tanques na rua, muita coisa despencando e o centrão abocanhando, a rapidez no retrocesso nos direitos, tudo pensando nas eleições”. Por isso, ela destaca para as feministas na agenda política o pedido de cassação da chapa, a luta antirracista liderada pela Coalizão Negra de Direitos, o fortalecimento do Levante de Mulheres, a luta contra a extinção dos povos indígenas, e por aí. Schuma defendeu a necessidade urgente da Reforma Política, até de uma Constituinte, e de pensarmos numa outra economia, solidária.
“Este encontro é fonte de reencantamento e força, num momento horroroso e perverso”, disse Marlise Matos, da UFMG. A professora falou da alegria de ver tanta vontade das mulheres estarem na política, “em meio a profunda crise política, institucional e corrosão da democracia, num avanço assustador do autoritarismo neofascista inclusive sobre os nossos corpos”. Além da crise política, lembrou Marlise da crise sanitária, onde as mulheres estão exauridas e invisibilisadas. Além da multiplicação dos trabalhos domésticos e de cuidados, mulheres compõe a maioria dos servidores da saúde e da educação, a violência doméstica e o feminicídio aumentam. As consequências deste período serão altamente danosas, inclusive para a saúde mental das mulheres.
Diante deste quadro, há eleições municipais e as campanhas políticas deverão ser reinventadas. Marlise levantou a necessidade de um letramento digital das mulheres, que devem candidatar-se nestas eleições. “Precisamos urgente aprender a utilizar todas as plataformas, porque eles já estão na rua. Nossos inimigos estão contando com nossa paralisação neste contexto de pandemia e se articulando pra avançar com milhões de bots, fakes News, etc.” A feminista acredita na enorme potência de mobilização feminista que temos no Brasil, mas também acha que “não podemos subestimar esse quadro grave de identificação da população com esse fascismo e esse autoritarismo”. Para ela, as eleições municipais são as mais importantes, porque as cidades são onde as pessoas estão mais próximas da política.
Feminista é coletiva
Com Jorge no colo, Aurea Carolina emocionou a todas, ela que havia confirmado sua candidatura a prefeitura de Belo Horizonte na véspera. Emocionou também ao falar da ressignificação que vive do cuidar, quatro meses depois do nascimento do seu filho, da percepção da centralidade do feminino no cuidar. “O cuidado não é benevolente nem submisso; é potência, firmeza, prioridade; é íntimo, mas também é público.” Decidiu concorrer à prefeitura de BH, apesar de não ter como renunciar aos cuidados com o filho. Acha que o central agora é agir, mesmo neste cenário de trevas. “Não é quimera a ocupação da política institucional, é presença dos nossos corpos diversos e o compromisso com nossas ideias”.
Áurea protagonizou a primeira mandata coletiva, na Câmara Municipal de BH, a Gabinetona, que serviu de inspiração para candidaturas coletivas feministas em várias cidades. “A gabinetona passa a ser referência de como podemos aprender a partir dos conflitos na diferença, nos cuidados, na confluência de ideias. A gente vem demonstrando como esse projeto é autêntico e transformador”. Para a atual deputada federal, a raiz disso é o fundamento na ancestralidade, o tecer mil formas de experimentar. Neste momento, decidiu aceitar a candidatura, e defende uma frente ampla de esquerda (envolvendo a centro esquerda), como estratégia de sobrevivência. “Eles apostam na concorrência entre nós e o perigo é o esfacelamento do campo progressista”. Áurea Carolina faz parte do Conselho da Internacional Progressista, nova frente criada por alguns intelectuais e políticos de todo o mundo.
“Nosso encontro começa no dia do solstício de inverno, dia da noite mais longa do ano, sinal da nossa força encantada”, falou Avelin Buniacá Kambiwá, assessora na Gabinetona, socióloga e fundadora do Comitê Mineiro das Causas Indígenas. A longa noite é como os ciclos que se renovam, o sol voltará. “Esse governo entrou de sola nos indígenas”, revolta-se Avelin, lembrando do último ataque, o corte nas cotas para indígenas nos espaços de pós-graduação. Como diz a sociológa, precisamos de todas as ferramentas de luta: caneta, certificados, cargos, pau de chuva. Pediu atenção para a invisibilidade dos povos indígenas, inclusive dentro das leis antirracistas e no campo da esquerda. “Projetos de lei que tocam os povos indígenas são cronicamente vistos como uma mera ‘aba’ dos considerados principais, e, no entanto, os povos indígenas são a raiz desta nação”. Por fim, desmente a crença de que os indígenas sejam responsabilidade federal, já que 38% da população indígena brasileira vive nos grandes centros. “A Funai se exime e as prefeituras não querem dialogar”.
Coletiva é diversidade
A advogada Robeyoncé Lima é co-deputada estadual em Pernambuco, pela mandata coletiva Juntas, é a primeira advogada transexual de Pernambuco, assim como primeira parlamentar. Ela lembra que o projeto de coletivizar os mandatos surge na #partidA e a boa votação obtida em Pernambuco, e também em SP, mostra como é bem-vindo um jeito feminista de ocupar a política. “Vale a pena a gente ocupar espaços de decisão neste contexto de racismo e de ódio. Uma mulher negra na política a mais significa um homem a menos”. Destacou que hoje existe uma proposta generalizada de retomada da democracia, sem discutir outros fatores estruturantes. “Somos 70% na luta pela democracia, e no combate ao patriarcado somos quantos mesmo? no enfrentamento ao ao racismo, à lgbttfobia?” A mídia quando fala de racismo prefere o dos EUA, racismo daqui não dá ibope. Segundo Robeyoncé, é preciso aprofundar nossa articulação durante e depois da pandemia, pois a luta contra o fascismo pode esconder questões de gênero e raça que são até anteriores: “Quem é cada um de nós na fila do genocídio?”
Dedicada a combater toda a lógica do capacitismo, Leandrinha Du Art, 25 anos, encerrou as diversas falas sobre a conjuntura. Midialivrista, fotógrafa, comunicadora, Leandrinha é uma referência nas causas de pessoas com deficiência (PcDs) e LGBTTs. Em relação à crise pandêmica, Leandrinha, cadeirante, lembra que as PcDs sempre estiveram isoladas, e diz que sua geração está cansada de discutir rampas e elevadores. Existe muita desinformação e atuar politicamente neste campo é desgastante e cansativo. Defensora da maconha medicinal para casos de deficiência e de outras causas mais polêmicas – como o suicídio assistido e o incesto consentido -, a militante afirma que a pauta da PcD hoje está na mão da extrema direita. Propõe que se chamem mais mulheres com deficiência para a política, como modo de suas pautas serem conhecidas.
Diversidade é nova utopia
Amanda Palha, comunista, travesti, bissexual, educadora popular e assessora parlamentar no Recife, também foi convidada para falar sobre conjuntura, mas não pode estar presente. Em compensação, impossível reproduzir aqui toda a riqueza, afeto e esperança das diversas falas das participantes. A primeira foi a antropóloga Adriana Dias, aquela mesma que falou brilhantemente em agosto do ano passado, na audiência pública do STF sobre descriminalização do aborto. Adriana pesquisa neonazismo, previu a ascensão da extrema direita e, na sua opinião, parte da direita acha esse governo pouco radical, gostariam de ver a criminalização da população lgbtt, por exemplo. Cida Falabella, uma mulher do teatro e vereadora em BH, ressaltou a importância de ampararmos uma à outra neste momento. Luciana Boiteux, professora de direito penal na UFRJ e jurista militante contra a guerra às drogas e o encarceramento, foi companheira de chapa de Marcelo Freixo à prefeitura do Rio, e sentiu como nunca que a forma de fazer política joga contra nós.
Várias candidatas a vereadora, a prefeita, professoras, advogadas, enfermeiras, comunicadoras, pastora, mas sobretudo um coletivo de feministas dispostas a apoiar mais mulheres nestas eleições. E a defender uma democracia feminista em todos os espaços de poder. “Precisamos eleger mais, não é suportável viver isso sozinhas”, falou Bella Gonçalves. Respeito à “mãe terra e cuidado emancipatório, não punitivista”, defende Polly Amaral. “Nós carregamos a Educação deste país” disse Ana Lièsi Thurler. “Temos que radicalizar o escândalo relativo à nossa ausência nos espaços de poder. Mostrar que outros poderes são possíveis”.
“A partida é um sonho coletivo, internacional, atemporal”, define Del Guerra, “é espaço de cuidado, reabastecimento e fortalecimento”. Luana trouxe a voz das mulheres das quebradas e das usuárias de drogas. “Se conseguirmos mudar a vida das mulheres negras, mudamos a sociedade, precisamos de uma democracia mais colorida”. Coro a essas palavras, Vanderléia, pré candidata a prefeitura de Contagem, diz que nossas candidaturas são um ato político. “Nosso corpo negro incomoda os espaços institucionais”. Carol Virgolino, co-deputada em PE pela Juntas, avalia que o sistema puxa a gente para agir de forma patriarcal. “Toda semana fica pior, mas seguimos sonhando e construindo novas utopias”.