Os monumentos e perversão pública

A ideologia opera de forma subliminar e sua característica é se auto ocultar. Mas invariavelmente constrói monumentos e imagens sólidas de pedra, bronze e cimentadas nas vias de circulação e lazer e que tentam vender-se como “patrimônio público” compondo a imagem natural de um passeio civilizatório perverso.
Sua expressão é pública e arrogante, fala explícita e abertamente da opressão e do controle dos corpos. Sua estética é violenta sobre a carne humana que submete. Porta o racismo, a misoginia e o genocídio em cada perspectiva ou passo do cotidiano como se sempre estivessem ali, comemorando no monumento, a eternidade da contrição dos corpos. Tenta justificar-se através de uma pseudodefesa do “público em geral”, do “nosso patrimônio” ou através de um “nós” já cindido por preconceitos e discriminações.

Diz o racista: “todas as vidas importam”, tentando desvencilhar-se do grito de que as vidas pretas importam. Diz o misógino que “todas vidas importam”, matando mulheres e agredindo desconhecidas na fila do supermercado. Dizem os genocidas que “todas vidas importam” quando condenam ao extermínio milhares de vidas, animais e espécies de uma floresta que agoniza sob as lâminas de uma escavadeira, boa para cavar, mas também eficiente ocultar em valas comuns os corpos dos mortos saqueados em suas memórias ou lutos durante uma pandemia e também essenciais para construir as tais estátuas de pedra e bronze.

Esse mesmo brado pseudocoletivo compõe o amálgama de ideologia com pedras e bronze ao tentar justificar e defender as horríveis, preconceituosas e agressivas esculturas ou estátuas: “querem matar nossa memória, destruir nosso patrimônio”, dizem os representantes do “nós fendido”. Tentam nos convencer de que uma estátua gigantesca, de um matador notório de índios, ladeada por um banco símbolo da exploração, em uma avenida nomeada de Santo, não agride só o bom gosto, mas também agride o luto da origem da riqueza Colonial brasileira.

“Qual o limite disso, destruir todo nosso patrimônio? Querem acabar com tudo que é memória?”, reverberam seus preconceituosos aliados, disfarçados de intelectuais renomados, críticos, museólogos, preservadores ou entendidos de alguma academia decadente de tanta presunção de “sabedoria” ou neutralidade da “beleza” ou “do saber”.

Quando alguém disser que “todas as vidas importam” ou disser que “todo patrimônio e memória devem ser preservados” a óbvia pergunta é: mas, a sua vida branca está ameaçada? Sua casa está pegando fogo? Sua imagem e semelhança está sendo agredida sob uma chibata “estética” em um parque? Seu patrimônio está queimando sob escombros deixados pela escavadeira? Você está sendo vendido como escravo sexual ou submetido a viver socialmente apagado?

Nem mesmo um quadro de Miró, que tanto admiro na forma, na beleza e sublimidade da sensação que temos ao olhá-lo de perto, vale mais do que uma vida humana: “uma” de unidade mesmo, não de generalidade. Que se queime a Mona Lisa do quadro ou o quadro da Tarsila, se isso preservar uma Mona ou uma Tarsila de carne e osso em um segundo de humanidade que ilumine o lado de fora do museu. Que se derrubem esses monumentos como gesto de preservação da memória coletiva.

Na vizinhança de qualquer museu brasileiro algum jovem negro ou alguma mulher estarão sendo espancados ou mortos, alguma bota de polícia estará pisando em alguém chamado conveniente de “marginal” e outro alguém estará sendo enxotado pelo jato de água dos caminhões tanques da limpeza urbana. Tudo isso naquele lapso de tempo, enquanto nos orgulhamos de participar e estar diante de um “patrimônio de toda humanidade”, feito de tela, papel, cimento, bronze ou madeira e bases de acrílico.

Sem dúvida estaremos ainda diante de obras de arte, mas será forte a sensação de estarmos em um velório, a observar as possíveis belezas de um caixão de defunto que deve ser enterrado logo para que não empesteie o ar.

Mas… como não gostar de Miró?

Legendas das fotos nas montagens.
1. Monumento aos bandeirantes em Santana de Parnaíba, SP. 2006. Cidade estratégica às incursões dos bandeirantes, o monumento retrata um negro escravizado puxando um barco com a fundadora da cidade. Rua Meatinga (na entrada da cidade).
2. Monumento à Borga Gato. 1963. Av. Sto Amaro, homenagem ao bandeirante e que escravizou povos originários do Brasil.
3. Glória Imortal aos Fundadores de São Paulo. 1913. Pça Pateo do Colégio, figuras que representam indígenas em trabalho baçal aparecem esmagados na parte de baixo.
4. Monumento às Bandeiras. 1953. Parque do Ibirapuera. Exaltação da colonização escravocrata.
5. Monumento ao Anhanguera (filho). 1920. Parque do Trianon, em frente ao MASP, homenagem a quem retornou com milhares de índios escravizados.
6. Monumento a Duque de Caxias, Pça Princesa Isabel. 1960. Escravocrata e responsável por 10 mil mortos na Balaiada.

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