Durante a campanha presidencial de 2018, muita gente fez promessa de que, caso Bolsonaro ganhasse, iria embora do país, ou no mínimo iria dar um tempo e viajar por aí. Se você é uma dessas pessoas, vai se identificar plenamente com a sinopse do documentário reality que assinala o segundo trabalho em longa-metragem do ator e produtor Caco Ciocler.
Promessa cumprida, uma equipe de cinema e alguns convidados, liderados pela atriz Georgette Fadel, aluga um ônibus, chama os amigos e parte de São Paulo, rumo ao Uruguai, na esperança de encontrar o ex-presidente Pepe Mujica na virada do ano, ele que se tornou um símbolo de resistência para aqueles que buscam um mundo melhor na América Latina. Ao longo do caminho, Fadel, para surpresa dos demais passageiros, decide que irá se candidatar a presidente do Brasil. Muitas situações do filme foram, naturalmente, criadas, mas não havia um roteiro previamente escrito. A candidatura de Fadel é espontânea, Ciocler garante que não esperava por ela, surgiu numa roda de ensaio.
Uma das intervenções mais contundentes do ônibus cenário é a do diretor de som português Vasco Pimentel, que faz uma fala provocante sobre a complexa relação histórica entre Portugal e o Brasil, um país que continua a ser um projeto, que “não era pra existir”, e que ele tanto ama. A ideia de utopia, de nos transformamos naquilo que não era pra ser, faz todo o sentido nessa busca por Mujica. Ao final da viagem e do filme, eles contam com o acaso e a persistência para fazer com que o destino final se cumpra.
Os personagens do filme são a própria equipe técnica, o diretor e sua companheira psicanalista, Fadel e a namorada, também atriz, Sarah Lessa, o empresário neoliberal e ator Léo Steinbruch. Julia Zackia, que faz a fotografia, está acompanhada de sua filha, Luiza, na viagem. Em termos de proposta, faz lembrar os roads movies, e traduz com força poética e, sobretudo, cinemática, a literatura de viagem. Sérgio Paulo Rouanet, em seu texto “Viajar é preciso”, afirma que “…só os viajantes são inteiramente humanos (…)” e que “os viajantes exercem, em sua plenitude, a prerrogativa máxima da espécie; a de cortar, consciente e voluntariamente, por algum tempo ou para sempre, os vínculos com o país de origem…” .
Essa ideia da viagem como um rito de iniciação necessário ou ainda como a conquista de uma nova identidade é premissa também do presente documentário. No trajeto, eles incluem uma parada no acampamento Lula Livre em Curitiba. Enquanto as divergências políticas ganham fôlego dentro do ônibus, mediadas por Fadel, discussões que incluem o empresário e o motorista, representam o Brasil da diáspora. Conseguiremos sobreviver e criar um espaço comum e democrático para a diversidade, e o filme ensaio se erige sobre essa alegoria convertida em imagem. Rumo ao futuro.
A produção modesta da obra sugere ainda outras possiblidades do fazer cinema em tempos de pandemia e bolsonarismo, quase como uma metáfora do que apenas era vislumbrado naquele período. Num momento em que todos se perguntam para onde vai o cinema nacional, alvo de ataques por parte da extrema direita que tomou o poder, Partida funciona como um registro ousado e um sopro de renovação.
Serviço
O filme Partida, que foi visto pela colunista durante o Festival de Aruanda 2919, estará disponível dia 18 de junho, quinta, nas plataformas Now, Vivo Play, Oi Play, Petra Belas Artes à la Carte, Filme Filme e Looke, e mais tarde no itunes e no google play. Nesta quinta também teremos uma sessão às 18h no Belas Artes Drive-in no Memorial da América Latina, em São Paulo.
Imagem: Produção filme Partida