Como vamos viver agora

Depois que Hugo ficou muito doente, se sentindo fraco, dia após dia, era como se estivesse mergulhando num pesadelo, e bem no começo, não quis procurar um médico, nem ninguém, conforme Stella me contou depois. Tanto tempo confinado, e quando ele menos esperava, se sentiu atingido duramente, sem saber o motivo deste súbito mal estar agora, ele ainda estava bem quando conversamos, e eu não quis compartilhar isso no grupo, mesmo porque ninguém sabia ao certo sobre os sintomas, e pode ser que ele estivesse apenas tendo um resfriado, e não uma recaída, como aconteceu com Rafael, e não necessariamente estivesse de fato contaminado, apenas deprimido, afinal foi tão difícil pra ele seguir em frente, depois que Helena e o filho morreram sem condições de ter um atendimento mínimo, isolados numa chácara remota, longe da cidade. Sempre soube que ataques de pânico poderiam surtir os mesmos efeitos, que a imunidade varia muito de pessoa a pessoa, eu mesma já havia sentido algo assim, a primeira vez que tentei sair de casa quando anunciaram a nova quarentena, senti que ia desmaiar, minhas pernas tremiam, aquela falta de ar e a cabeça girando. Mas havia ainda o problema de ser identificado nas ruas, afinal se eles soubessem de novas fontes de contágio, ele poderia ser caçado como animal ferido até ser brutalmente abatido, eles agora andavam em bandos organizados, com máscaras e coquetéis caseiros, armas, fazendo barreiras nas avenidas principais, e ao menor alvo suspeito, atiravam para matar, sem perguntas. O melhor era omitir qualquer eventual perda de equilíbrio, olhos lacrimejantes, rostos que ardem, rouquidão.

A cidade estava entregue a eles agora, eram um braço paramilitar do regime, tinham poderes sobre tudo e todos, não era uma opção razoável enfrentá-los. A ordem era desaparecer com os corpos, queimando-os até virarem cinzas, ou colocando em vans para desovar em sítios distantes. Não podia haver vestígios da doença em nenhum rosto, nenhum lugar, nenhuma imagem vinculando a humanidade a uma epidemia, a essa peste, a nada. A enfermidade era para os fracos, e se a morte deveria ser um instrumento para aperfeiçoar a qualidade de vida, deveria haver beleza e dignidade em executar outro ser humano.

Havia ainda o problema das pesquisas. Eles iam de porta em porta coletando dados, revistando as casas, apartamentos. Nada escapava ao censo dos agentes de saúde. Não era incomum saber que após a visita de um deles, alguém da família havia desaparecido. Eles apenas preenchiam formulários, avisavam, “não nos compete cuidar de nada”, somente assinalar quadrados brancos e ler as orientações, e isso era tudo.

A febre de Hugo aumentava, entretanto, conforme nos contou depois Leonor, que pediu a Carlos para não mencionar o que acontecera a Antônio, que mal conseguia respirar, e definhava em silêncio, desenganado, ardendo em solidão, portanto não era seguro para ele permanecer em casa nesse estado. No entanto, para onde iria? O medo se apossara de todos, mesmo porque havia desconfianças de denúncias e perfis falsos nos grupos, até mesmo enviar uma mensagem por e-mail ou WhatsApp poderia ser muito perigoso. Havia ainda relatos de que as fronteiras com a Argentina estavam relaxadas e que poderia ser seguro planejar uma fuga, trocando de carros, de transportes, sem levantar suspeitas. Aviões estavam totalmente cerceados e controlados por policiais, não era mais possível sair do país ou da sua cidade sem ser notado e detido. Nas estradas, o controle podia ser menor.

Stella, no entanto, sempre nos alertava para o que havia levado a isso, e de como nos deixamos levar por falsas impressões, por uma paz aparente, promessas de estabilidade, de bem estar, desatentos até mesmo a uma simples folha seca que cai na rua vazia em silêncio como se fosse natural. Meu rosto inchado, vulnerável, minha coluna que queima, comorbidades, eu me vejo no espelho como em nenhum outro período de minha vida adulta, suspensa numa espécie de torpor, inerte, e por um segundo vislumbro pela porta entreaberta minha filha que não consegue mais dormir, que está sempre agitada, que anda pelas ruas e está cada vez mais distante de mim. Ela está pegando a mochila, eu vi a arma de relance, ela vai partir, meu coração dispara. Ela me olha entediada, e diz que vai voltar, para eu não me preocupar, minha filha que não é mais menina. E se vai sem fazer um ruído, sem nem mesmo se despedir, seus olhos flamejavam de ódio. O dia parece eterno, igual. Ao anoitecer, distingo vultos pela janela, ouço vozes, ninguém. Adormeço sem amanhã, sem sonhar nem nada, hoje é tudo que se tem, durmo acordada.

imagem: Aline Arruda

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