imagem: São Jorge da Capadocia
Ontem foi dia de festejar São Jorge da Capadócia. Retornei à leitura de São Jorge da literatura brasileira com gosto, tempero e discaração presentes no universo barroco, atropelado pela modernidade e pós-tudo-da-puta-que-os-vomitou…
Na minha juventude li poucas obras de Jorge Amado. Era uma leitura menor para a plebe empolada da esquerda. Nos anos 60/70 o ser pra frente lia Dostoievsky, Tolstoi, Proust, Camus, Joice, Genet, Sartre, Dante, Virgílio, Cortázar e outros.
Os poucos livros que li, amei. Mas no íntimo fui incapaz de abrir meu coração, sentidos e emoção para seu Jorge do Rio Vermelho, vizinho de Marie Helene Russi, uma das filhas do jardineiro suíço.
Agora, no limiar da velhice e no cagaço de ser premiado pelo coronavírus, a obra do mega baiano é uma das melhores companhias para equilibrar a mente durante o isolamento social e sexual.
Em 41 dias confinado no lar Tereza Batista Cansada de Guerra é o quarto livro de seu Jorge de Oxóssi que estou lendo. Lendo? Divertindo-me e rindo sozinho com a trama e os causos. Parte da família de meu pai é de Sergipe. Morou em Aracajú, Boquim e Estância, principais cenários da história de Tereza. Aquilo tudo existiu até os anos 70 ou mais um cadinho.
Evito referir-me a força, a beleza e a sina de Tereza Batista, que já foi dissecada por Paloma Amado, numa crônica dedicada ao #8M. Aliás foi essa crônica que suscitou a antecipação da leitura.
Uma das coisas mais interessantes do livro é a homenagem que seu Jorge faz aos trovadores do Nordeste, os pasquineiros dos anos da construção de Brasília e da bossa nova. Em vários trechos do romance são feitas citações de cordéis e nomes de cordelistas contando liricamente momentos essenciais da dura batalha da sobrevivência altaneira da negra Tereza Batista.
Quando terminou mais um ciclo existencial de Tereza Batista, mediante a morte do coronel por infarto durante uma mortal trepada,* o autor dedica quatro páginas para descrever os cordéis que contam a passagem é-pica do coronel (bode velho).
É tocante, generosa e grandiosa a humanidade de seu Jorge ao discorrer sobre os cordéis imaginários, somente para divulgar trovadores de Sergipe e da Bahia. Ao fim e ao cabo estica um tapete vermelho para o poeta popular Cuíca de Santo Amaro.
“Assim escrevi por assim pensar e entender, eu, Cuíca de Santo Amaro, o Tal, de fraque e chapéu-coco em frente ao Elevador Lacerda, marcando minha inspiração e minhas rimas”.
Ao ler e reler esta citação arrepiei e chorei horrores. Recordei-me de Cuíca na parte de cima do Elevador Lacerda. Toalha de plástico acolhendo e protegendo os livros organizados no chão. Estava com meu avô Maninho quando Cuíca lançou e declamou “O homem do Canivete**”, em prosa e verso.
O cordel é muito importante na minha vida desde a adolescência, juventude até a maturidade. Cheguei em Feira de Santana no ano de 1965, quando a cidade ainda era uma grande feira ao longo da Avenida Getúlio Vargas, beirando as margens da Avenida Maria Quitéria.
Havia o ponto dos cordelistas, repentistas e dos vendedores de remédios e poções mágicas para cura de reumatismo, doenças venéreas, lombrigas e reumatismo, os quais eram hábeis na arte de declamar. Lá vai um verso para vender remédio de levantar o manguá.
“Meus amigos
Eu recebi está fórmula
De dois espiritos da Amazônia.
Seu upa e seu cupa.
Quando seu upa sobe
Seu cupa desce
Quando seu upa subia
Seu cupa descia”.
Mas o cordel foi além do conhecimento prático da arte popular. Nossa professora de literatura, Eli Oliveira, conduzi-nos ao entendimento dos aspectos relevantes da estrutura da gramática do cordel ressaltando a influência da Península Ibérica num dos recortes da formação cultural do Brasil, especialmente a Nordestina. Temos um triângulo de ferro em nossa formação cultural, social e antropológica: o índio, o negro e o português.
Do tempo do Colégio Estadual de Feira de Santana reencontrei, pelo facebook, o sempre colega Cezar Ubaldo Araujo, professor e poeta. Conversamos sobre a importância da professora Eli Oliveira que abriu nosso horizonte para o estudo e a leitura da prosa e da poesia nos idos de 1965/6.
É tempo de voltar à leitura de Tereza, torcendo para que ela vá pra Bahia e reencontre o mestre Janu, para um enlace amoroso entre iguais.
Adrô Quintela de Xangô
(crônica escrita em 24 de abril de 2020)
Brasília, Ano I-DC.
* Seu Cici, meu tio avô, também morreu de trepada após comer uma caranguejada, no Sítio do Conde.
** O homem do canivete furava as bundas das moças de Salvador entre 1976 e 1977. Foi um período de medo e pânico com grande cobertura dos jornais e das rádios nos programas policias. O sádico foi preso e virou prosa e verso dos trovadores baianos.
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