Outro dia eu tive esse sonho louco, talvez por conta da pandemia, de um Facebook realizado na vida material, transformado em acontecimento de carne e osso, presença viva. As pessoas saiam as ruas com cartazes, fotos, poemas, como um hábito cotidiano. Ficavam paradas nas esquinas, com suas postagens concretas, esperando a interação dos passantes. Os transeuntes, por sua vez, faziam seus comentários e curtidas pessoalmente, lendo de passagem poemas escritos em cartolinas por exemplo, felicitando a autora ali, com um tapinha no ombro ou quem sabe um bilhete. Paravam para conversar rapidamente, diante de uma linda foto de um gato brincando com um bebê que alguém trouxe para exibir em uma praça digamos, trocando seus comentários no tête-à-tête, às vezes amorosos, às vezes conflitantes, a depender da postagem de cada pessoa, feita na vida material. Aí, ao invés de Instagram, as pessoas convidavam as outras pessoas para um instante de observação, convidavam umas às outras para compartilharem a descoberta do assombro de uma paisagem determinada, um pôr-do-sol observado de um lugar exato escolhido em uma ponte, suponhamos, ofertando as e aos transeuntes um momento coletivo de mirada do real. Levavam, inclusive, celofanes e óculos com lentes coloridas de diversos tipos, propondo diferentes filtros para esse ato de ver em conjunto. Ao invés de Twitter via-se pessoas subindo em bancos e caixotes para pronunciar frases de efeito ou comentários de ocasião, nos terminais de ônibus, praças, lugares do tipo, recebendo uma atenção repentina e explosiva dos passantes, com suas réplicas reais de palavras e gestos. As selfies se tornaram um instante de contemplação da beleza alheia, com as pessoas se arrumando lindamente para posarem em cafés, feiras, passagens, etc., ficando lá, meditativas e belas, motivadas pelo simples ato de expor beleza para o mundo, sem nenhum constrangimento. Nesse novo regime de redes sociais desempenhadas nos espaços materiais, nesse sonho louco de quarentena, a vida das cidades era um organismo pulsante, hiper habitado, alvo do desejo de todas as gentes, eufóricas por circular por todos os espaços, abertas para as inúmeras postagens, comentários, miradas, análises. As pessoas ocupando as ruas, propondo experiências de encontro com seus dizeres, afetos, achismos, segredos, homenagens, produções artísticas, declarações, teorias, distribuídas generosamente pelo tecido urbano, como uma constelação pulsante de troca humana. Sonhei assim com esse acontecimento, essa nova rotina de sociabilidade, troca e poesia, acho que por conta da ressaca do excesso de telas e meios digitais da nossa (aos que podem) isolada rotina. Uma rede social viva que revelasse um novo jeito de existir e de cidade. Um delírio de um novo dia pós-pandemia. E que dia!
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Breve nota de explicação sobre a ausência do ódio dos meios digitais no conto acima:
Tive esse sonho louco das redes sociais realizadas na vida material que transformei em conto, mas ficando só com seu lado bom, sem pensar na evidente transposição da pancadaria e das ofensas abomináveis que participam desse mundo da internet, sem transcrever a polarização, ódio e superficialidade lacradora da retórica comum desses meios digitais. Isso sem contar as corporações que lucram com a coisa toda, o marketing da experiência feito a partir dos dados que entregamos de maneira alegre e sincera, o digital que coloniza nossa alma, passando pelos porões conspiratórios digitais de olavistas, neonazistas, ultramachistas e toda fauna exótica de ideologias genocidas nas deep webs da vida. Esses e tantos outros feitos notáveis de dominação e violência que surgiram com a internet, seguindo a metáfora do conto, fariam parte dessa transposição para a vida material (não mediada digitalmente), sem dúvida, cada um desses elementos. No entanto, querendo compor aqui um conto de caráter positivo, digamos assim, utópico-esperançoso, ou quem sabe talvez pelo desanimo e preguiça de transformar em imagem literária esses dispositivos de violência e submissão dos meios digitais, deixei essas idiossincrasias todas de lado. Minhas sinceras desculpas.
O autor.
P.S.: Também não quis falar do Tinder. Deixo para vossas criativas imaginações.
imagem: O Jardim das Delícias Terrenas de Hieronymus Bosch