Austericídio, Pandemia e Colapso do Liberalismo Econômico

Imagem: ciranda.net

Chamamos Austericídio ao conjunto de pressupostos ideológicos (1) e diretrizes de política macroeconômica (2) que conformam um arranjo . Eles possuem precária fundamentação teórica e histórica e produzem resultados opostos aos desejados, com enormes e negativas repercussões sobre a capacidade de crescimento, geração de empregos e distribuição de renda e riqueza numa sociedade, tal qual a brasileira, já marcada estruturalmente por imensas heterogeneidades, desigualdades e necessidades de várias ordens.

Com isso, de modo trágico, porém nada surpreendente, resta agora cristalina a incapacidade do liberalismo econômico em entregar o que costumava prometer, de maneira sempre mirabolante e falsa. Em plena crise pandêmica do novo coronavírus!

Calamidades entregues

Ao invés de pleno emprego dos fatores de produção (terra, trabalho, capital, conhecimento) e bem-estar geral das pessoas (o mantra do ótimo de Pareto), o liberalismo econômico e a política austericida que o caracteriza vêm entregando calamidades. Vale dizer:

i) esterilização do capital produtivo e financeirização dos fluxos de renda, processos esses por meio dos quais o Estado e as finanças públicas operam numa lógica de subordinação quase absoluta aos objetivos dos segmentos mais ricos (ainda que pouco numerosos) da população;
ii) desemprego, subemprego, precarização, baixos e irregulares salários, concentração crescente da renda e da riqueza, mobilidade social descendente intra e entre gerações;
iii) colapso ambiental;
iv) mercadorização e instrumentalização da ciência e dos conhecimentos por ela produzidos, com empobrecimento material e cultural crescente da sociedade em pleno século XXI…

Instrumentos defendidos
Significa dizer que os instrumentos defendidos pelo liberalismo econômico se converteram na finalidade última desses sistemas. Os meios (isto é: a propriedade privada como fundamento, a concorrência como princípio e a acumulação de capital monetário como objetivo maior) se converteram em fins em si mesmos do modelo. Retirando de cena tanto os pressupostos (irrealistas) sob os quais tal economia poderia funcionar, como as consequências concretas deletérias para o planeta e a espécie humana que tal mecanismo engendra.

O colapso ambiental, a deterioração das condições de trabalho e existência, a financeirização (e exclusão) da renda e da riqueza, o empobrecimento cultural e civilizatório de modo geral são consequências diretas – e abjetas – do liberalismo econômico. E, se converteram em fatos normais e naturais da realidade alienada ou resignada das sociedades contemporâneas.

Apenas quando um choque externo (extremo e coercitivo) como este, causado pela crise humanitária do novo coronavírus, ameaça se converter em crise econômica e financeira catastrófica para a lógica de reprodução do liberalismo em voga é que os agentes detentores do poder político e econômico em cada país se dão conta de que tal modelo não possui mecanismos automáticos regeneradores da situação pretérita tida como normal e natural, ainda que já catastrófica para o planeta e seus habitantes. É apenas neste momento que concedem liberdade de ação para a única entidade criada até o momento pela humanidade, com capacidade, recursos e instrumentos para tentar – ainda que sem êxito garantido – enfrentar tamanha destruição.

A tarefa dos Estados Nacionais

Aos Estados nacionais cabe, de agora em diante, a tarefa hercúlea de combater a crise econômica e humanitária em curso, por meio sobretudo de instrumentos fiscais e monetários condizentes e através de políticas públicas em áreas críticas para a reprodução social (tais como a saúde, o emprego e a renda). Essa empreitada já começou de modo decidido em praticamente todas as partes do mundo. Na Europa, por exemplo, os ministros das Finanças da União Europeia aprovaram a suspensão das regras orçamentárias do bloco, permitindo assim que países do grupo aumentem seus gastos públicos para combater o novo coronavírus sem serem penalizados. A medida proposta pela Comissão Europeia entrou em vigor em 23 de março de 2020. Pela primeira vez, os países da zona do euro não vão precisar cumprir as rígidas regras orçamentárias de Bruxelas, como as que os obrigavam a limitar o valor do déficit orçamentário ao teto máximo de 3% do Produto Interno Bruto (PIB). Em outras palavras, “os governos nacionais poderão injetar na economia tanto dinheiro quanto for necessário”, conforme explicou a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen.

E no Brasil …
Enquanto isso, aqui no Brasil o governo Bolsonaro∕Guedes simplesmente ainda não entendeu o tamanho e as implicações catastróficas da crise. E, tampouco demonstra ter competência técnica ou sensibilidade social para enfrentá-la. Cabe, portanto, à sociedade organizada e ao Congresso Nacional a tarefa de protagonizar o enfrentamento à altura dessa crise. As alternativas propostas, sobretudo por entidades e segmentos da sociedade civil organizada (3), ainda que insuficientes, podem atenuar ou mitigar os impactos econômicos e sociais da crise econômica e humanitária em curso, indo muito além das prescrições deletérias que o atual governo vem sugerindo para o enfrentamento da mesma. Afinal, já devia estar claro para a atual equipe econômica que essa não é uma crise que será superada por meio do mercado, mas sim pelo resgate do protagonismo agressivo do Estado social e por meio da solidariedade entre as pessoas e colaboração entre países.

Notas:

(1) Pressupostos ideológicos tais como:
i) uma visão intrínseca e extremamente negativa acerca do Estado e do peso e papel que os governos, as políticas públicas e os próprios servidores civis deveriam desempenhar relativamente às esferas do mercado e da sociedade; e

ii) uma visão teórica e histórica (extremamente simplista e questionável) acerca de uma suposta independência, superioridade e positividade do mercado (como representante etéreo e idílico da esfera privada), relativamente ao Estado, visto como a fonte de todos os problemas do mundo econômico e incapaz de bem representar (e agir para) os interesses gerais da sociedade e da esfera pública, cuja ação é vista como deletéria ao “equilíbrio econômico e social justo” que poderia advir da interação direta e desimpedida das “vontades individuais” mediada pelos mercados privados e monetários de bens e serviços.

(2) Diretrizes da política macroeconômica tais como as expressas, no caso brasileiro, pelo tripé de política macroeconômica (vale dizer: regime de metas de inflação, perseguidas em grande medida pela combinação entre taxa de câmbio apreciada e geração de superávits fiscais primários elevados e permanentes), que vem sendo seguido desde basicamente desde 1999 no país e para o qual importam:

i) a manutenção de taxas de juros oficiais acima das respectivas taxas da maior parte dos países que concorrem com o Brasil pelos fluxos internacionais de capitais; e
ii) a juridicalização (fenômeno por meio do qual se transformam em normas jurídicas rígidas, tanto mais graves quanto mais no plano constitucional estiverem) de alguns regramentos de natureza econômica, particularmente os das finanças públicas, tais como a LRF e a EC 95, dentre muitos outros.

A juridicalização vai então institucionalizando um verdadeiro processo de financeirização da Dívida Pública Federal e privatização da sua gestão pelas autoridades monetária (BACEN) e fiscal (STN) do país.
Ela promove, de um lado, bloqueios e limites superiores ao gasto fiscal primário de natureza real, justamente o gasto que é responsável pelo custeio de todas as despesas correntes, tanto as intermediárias/administrativas, como as finalísticas destinadas à implementação efetiva das políticas públicas federais em todas as áreas de atuação governamental.

E de outro lado, regramentos que representam a flexibilização sem limite superior e a blindagem (inclusive para fins criminais) do gasto público financeiro, cujos principais beneficiários são as instituições financeiras (bancos, corretoras, seguradoras), fundos de investimento e agentes econômicos de grande porte.

As implicações desse processo são perniciosas para a dinâmica de crescimento econômico, bem como para as condições de reprodução social da população. Posto tratar-se de opção política de política econômica, esse arranjo institucional que está se consolidando no Brasil é passível de contestação teórica e empírica, razão pela qual é importante desnudar as suas implicações e apontar alternativas críveis para redesenhar a referida institucionalidade com vistas à promoção de um desempenho econômico e social mais condizente com o potencial e anseios de crescimento e de inclusão do país.

(3) Uma parte desse acervo pode ser visualizado em Afipea

José Celso Cardoso Jr é Doutor em Economia pelo IE-Unicamp, PHD em Governo e Políticas Públicas pelo IGOP-UAB. Desde 1997 é Técnico de Planejamento e Pesquisa do IPEA e desde 2019 é Presidente da Afipea-Sindical, condição na qual escreve este artigo. As opiniões, erros e omissões são responsabilidade do autor.

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