Foto: Vista aérea da área industrial da SAMA e mina de Cana Brava, Fonte: Relatório de Sustentabilidade SAMA, 2013, p. 51
A expressão “mãe de Minaçu”, utilizada recorrentemente pela população deste município do extremo norte goiano ao se referir à mineradora de amianto crisotila S.A. Minerações Associadas (SAMA), é uma indicação sobre como se deu a relação da empresa com a cidade e seus moradores por mais de cinco décadas. Para entender essa conexão e, principalmente, analisar os processos sociais de adoecimento, sofrimento e morte provocados pela contaminação por amianto, o pesquisador do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Faculdade de Ciências Sociais, da Universidade Federal de Goiás, Arthur Pires Amaral, realizou um estudo no doutorado que propõe uma etnografia sobre a negação do adoecimento de trabalhadores do amianto naquele município.
Para o antropólogo, há uma vinculação afetiva da população à mineradora, que foi propiciada não apenas devido à oferta de milhares de contratos de trabalho formal, mas também em decorrência de todo um conjunto de medidas socioeconômicas destinadas a seus funcionários, à ampliação da economia e do turismo locais, e aos cofres públicos municipais (por meio do pagamento anual de milhões de reais em impostos à Prefeitura), desde o início de suas operações no ano de 1967. Ele afirma que a história da empresa em Goiás está entranhada na construção da identidade de Minaçu, que surgiu e se consolidou de maneira conjunta e, até então, inseparável com a mineradora SAMA: “Tais medidas geraram, ao longo dos anos, uma defesa coletiva das atividades industriais implementadas pela mineradora, contribuindo assim para o silêncio público a respeito das mortes decorrentes do agravamento de doenças relacionadas à exposição ocupacional às fibras do amianto crisotila”.
O pesquisador demonstra em sua tese – desenvolvida a partir de extenso levantamento bibliográfico, de um trabalho de campo realizado ao longo de 10 meses na cidade de Minaçu (onde chegou a estabelecer residência), de entrevistas em profundidade, da análise de diferentes tipos de documentos sobre a situação das doenças do amianto no Brasil e no mundo, além de outros estudos teóricos e empíricos sobre o tema – que os processos sociais de adoecimento, sofrimento e morte de trabalhadores do amianto em Minaçu são compreendidos e assimilados como parte da rotina normal/ordinária da vida cotidiana local, provocando assim um sentimento de solidão entre os adoecidos e os familiares que conviveram de perto com as suas dores, compartilhando as suas aflições. Conclui também que “essa solidão, somada a relações de poder socioeconômico e institucional exercidas pela empresa mineradora SAMA, impedem o engajamento ético, político e civil que levaria à sua efetiva denúncia coletiva”.
A empresa foi procurada pelo Jornal UFG para se manifestar sobre o estudo, mas informou que não faria comentários.
Os revoltados
De acordo com Arthur, estudos epidemiológicos internacionais demonstram que as doenças do amianto não atingem apenas os pulmões e outros órgãos do sistema respiratório como, por exemplo, a laringe: “Elas afetam também órgãos do sistema digestivo como estômago, fígado e intestinos, uma vez que a contaminação pode ocorrer através da inalação e da ingestão das fibras de amianto. Uma vez dentro do corpo humano, as fibras microscópicas do crisotila podem provocar o surgimento de asbestose, placas pleurais e de tumores malignos em diferentes partes do organismo. Isto sem falar de um tipo raro de câncer altamente agressivo, sempre letal e que é resultado da exposição exclusiva ao amianto – o mesotelioma de pleura ou de peritônio”.
Conforme depoimentos colhidos pelo pesquisador, de viúvas e filhos de ex-funcionários da SAMA em Minaçu (GO), seus maridos/pais apresentaram sinais e sintomas médicos semelhantes de suas doenças, tais como: insuficiência respiratória aguda e progressiva; tosse constante; cansaço extenuante; fortes dores no peito, nas costas e na região abdominal; coloração verde-amarelada de pele e olhos (indicativa de alterações hepáticas), e/ou hemorragias internas seguidas de vômitos do próprio sangue (estes últimos durante a fase terminal de suas vidas). O antropólogo afirma que “mesmo assim, os trabalhadores abordados em sua pesquisa etnográfica não conseguiram ter as suas doenças associadas ao trabalho com o amianto crisotila na mineradora SAMA, seja pela dificuldade de acesso aos exames, realizados em clínicas previamente indicadas pela empresa e retidos por ela, seja pelas conclusões padrões dos laudos de sua junta médica – a saber: ausência de alterações pleuro-pulmonares por exposição ao amianto”. Essas dificuldades estão documentadas tanto na tese de doutorado de Arthur Pires Amaral quanto no Dossiê do Amianto no Brasil – relatório da Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável da Câmara dos Deputados, publicado em 2010. “Esses ex-funcionários da SAMA vieram a óbito sem receberem qualquer tipo de assistência médica e de indenização financeira por parte da empresa mineradora, sendo muitas vezes responsabilizados pelo próprio agravamento de suas precárias condições de saúde”, ressalta Arthur.
Para Arthur Amaral, estes antigos trabalhadores do amianto em Minaçu, bem como suas viúvas e seus filhos, “cujas dores e sofrimentos também não foram reconhecidos, são os que estavam/estão revoltados com a situação de desamparo e abandono que a empresa os colocou. Por conta disso, eles se sentem menos ameaçados pela mineradora, mostrando-se bem mais abertos a verbalizar duras críticas contra a SAMA”, afirma o antropólogo.
Foto: Bancada de rejeitos de amianto em Minaçu – Arthur Amaral
Silêncios
Porém, ressalta o pesquisador, tais críticas são geralmente realizadas de maneira individual, restringindo-as sempre ao espaço doméstico. Arthur explica como se dá esse silenciamento público em nome da manutenção do pertencimento à comunidade mais ampla: “Para resguardar os vínculos sociais com os moradores que defendem a mineradora, os ‘revoltados’ devem ser discretos e não comentar nada sobre questões que possam prejudicar a empresa. É possível afirmar que em Minaçu há toda uma etiqueta moral reguladora do que pode ou não pode ser dito, e que é permeada por relações coercitivas impostas pelos grupos locais pró-SAMA. A denúncia e o testemunho das angústias vividas por aqueles trabalhadores, na busca ineficaz por diagnósticos, tratamentos e assistências médico-hospitalares para os sintomas de suas doenças, colocam em xeque as suas próprias reputações pessoais”.
Para saber mais:
AMARAL, Arthur Pires. Com o peito cheio de pó: uma etnografia sobre a negação do adoecimento de trabalhadores do amianto na cidade de Minaçu (GO). 2019. Orientação do trabalho: Professora Mônica Thereza Soares Pechincha. 289 f. Tese (Doutorado em Antropologia Social) – Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 2019. Acesso em: 28 de junho de 2019. https://repositorio.bc.ufg.br/tede/handle/tede/9686
DOSSIÊ AMIANTO BRASIL – Relatório do Grupo de Trabalho da Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável da Câmara dos Deputados destinado à análise das implicações do uso do amianto no Brasil. Brasília, 2010. Acesso em: 28 de junho de 2019. https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=6D7A48F5E37BF9E0890451F24A3A6917.node1?codteor=769516&filename=REL+1/2010+CMADS
Fonte: Jornal UFG https://jornal.ufg.br/n/118833-negacao-do-adoecimento-pelo-amianto