Foi a primeira vez, em minha já longa militância feminista, que vi um debate sério acerca da legalização do aborto em espaço institucional. Foi no Tribunal de Justiça de São Paulo, no caso, na primeira audiência pública para discussão das propostas do capítulo “Crimes Contra a Vida” do anteprojeto do novo Código Penal. De acordo com o procurador regional da República Luiz Carlos dos Santos Gonçalves, relator da comissão instituída pelo Senado para elaboração do anteprojeto, o evento é uma oportunidade de mostrar as mudanças propostas e ouvir a população sobre os crimes contra a vida: homicídio, eutanásia, ortotanásia, suicídio, infanticídio, aborto.
Teve gente que se despencou de outros estados para esta audiência, que tinha o salão lotado por mais de 500 pessoas, comprovando o quanto faz falta uma democracia mais participativa em nossa República. Já não era sem tempo a “modernização” do Código Penal, cuja legislação é de 1940, totalmente incompatível com as mudanças socioculturais vividas desde então. Este aspecto foi saudado em vários pronunciamentos, e motivo principal da Comissão de Reforma do Código Penal, proposta pelo senador Pedro Taques (PDT-MT) e instalada em outubro de 2011.
“Não acompanhamos o avanço da sociedade”, falou o desembargador Ivan Sartori, presidente do TJSP e conhecido dos movimentos sociais paulistanos. Segundo fala do ministro Gilson Dipp (STJ), o que a comissão pretende é adaptar o Código Penal à Constituição de 1988 e fazer dele o centro do sistema penal brasileiro. A criminalização do terrorismo e crimes praticados na internet também está prevista para integrar o novo Código. Vamos prestar atenção.
Direito ao aborto é saúde
A diversidade de ideologias, religiões, conceitos filosóficos formadores da nação brasileira, foi destacada pelo coordenador dos trabalhos, ministro Gilson Dipp. E apareceu bastante nas várias falas, tanto de autoridades como dos cidadãos e cidadãs inscritos. Algumas instituições, convidadas a dar sua contribuição e a falar na abertura ao plenário, preferiram informar que enviarão suas sugestões por escrito, e muitas não apareceram.
Espanto com o número de inscrições, feitas antecipadamente, foi manifestado pela organização, que informou ter limitado a fala a uma centena de pessoas inscritas. Associação dos Advogados de SP, dos Magistrados, dos Juízes pela Democracia, Defensoria Pública, Ministério Público, Conselho Federal de Medicina, Sociedade Brasileira de Bioética, foram algumas entidades presentes. “Isto é um exercício de republicanismo e de democracia”, falou Eduardo Vera-Cruz Pinto, diretor da Faculdade de Direito de Lisboa, lembrando que “o código penal é sempre uma decisão política, não técnica, necessita da participação da sociedade”. Os senadores Aloysio Nunes Ferreira e Eduardo Suplicy também estiveram presentes, ao menos no início da audiência.
Apesar dos vários “crimes contra a vida” em debate, o direito ao aborto foi sem dúvida o tema mais discutido, já que na contemporaneidade não é considerado crime na maioria dos países. Católicas pelo Direito de Decidir, o Cladem e a Frente Nacional pelo fim da criminalização das mulheres e pela legalização do aborto também foram organizações convidadas a falar. Ainda bem, foram as únicas mulheres convidadas a se manifestar, em meio a tantos desembargadores, juízes, doutores.
Descriminar as mulheres
Maria José Rosado, das Católicas, disse das inúmeras razões que fazem sua organização defender a retirada do aborto do Código Penal e a sua regulação por legislação específica. “Defendemos a legalidade e a legitimidade do direito da mulher ao aborto, para que as mulheres deixem de morrer”, disse. “Assim como o aborto forçado, a maternidade forçada também é prejudicial à mulher. Temos respeito pela maternidade, mas essa capacidade deve ser de livre escolha da mulher”.
Sonia Coelho, ao falar pela Frente Nacional pelo direito ao aborto, comoveu a plenária ao contar a história de mulher que morreu em decorrência de aborto inseguro, e a filha mais velha resumiu os motivos dela – “tinha medo de perder o emprego, que era de carteira assinada”. “A clandestinidade afeta prioritariamente as pobres”, falou Soninha, que apresentou alguns números e dados da questão no Brasil. A legalização do aborto na África do Sul, seguida de diminuição do índice de mortalidade materna, foi citado por ela como exemplo que o Brasil devia seguir, já que esse índice em nosso país é alto, sendo a quarta causa de morte das mulheres.
O infanticídio (mãe matar o filho sob influência do parto) foi também levantado pela líder feminista, demandando que também saia do código penal. Maira Fernandes, representante do Cladem e membro da comissão de Bioética do Rio de Janeiro, lembrou de que foi nos anos 70 que a Europa e os EUA discutiram o aborto, e vários países da América Latina estão avançados neste debate. “Passa da hora de o Brasil rever essa legislação punitiva do aborto”, disse, ressaltando a discriminação institucional que sofrem as mulheres que optam por abortar. Como se essa decisão já não fosse carregada de sofrimento.
Entrar no século XXI
Felizmente, além das feministas presentes e inscritas para falar, presença destacada na plenária, vários juristas e médicos defenderam a descriminação do aborto. “Reiterados encontros com organizações de direitos humanos e estudos mostram que o abortamento inseguro é problema de saúde pública”, defendeu representante* da Sociedade Brasileira de Bioética. Ele defende o termo “interrupção voluntária da gravidez” e destaca que a mulher a ser descriminalizada “é a que sofre abandono, perde o emprego”.
Defendeu ainda a eutanásia e a ortotanásia (direito do paciente terminal libertar-se das tecnologias e morrer onde queira). Para o Conselho Federal de Medicina, “a autonomia e a vontade são os alicerces da existência humana”, nas palavras de seu representante*. “Enfim, o Legislativo está enfrentando demandas antigas do povo”, disse a Associação de Juízes pela Democracia. Em relação ao aborto, o juiz questionou a plenária – “quem não conhece alguém que já fez aborto?” – e defendeu que “o legislativo seja ousado e se adéqüe às convenções internacionais”.
“Criminalizar o aborto não é a solução”, disse Dr. Cristião, da Federação Brasileira de Ginecologia e Obstetrícia. “O que reduz a taxa de abortamento é educação sexual, distribuição de contraceptivos, descriminar o aborto é necessário por uma questão de justiça. O suposto direito à vida está trazendo a morte para as mulheres”.
O discurso contrário, que diz “defender a vida”, só apareceu na segunda metade da plenária, em menos vozes. Com os conhecidos argumentos, inclusive o bonequinho do feto entregue à mesa, defenderam que a Constituição inclusive é omissa ao defender a vida humana, como querem. Saudaram o México, onde depois de legislação pelo direito ao aborto, já conseguiram colocar na constituição de 18 estados, “o direito à vida desde a concepção”.
Outras polêmicas
Segundo o Observatório Brasil da Igualdade de Gênero, outros aspectos presentes no novo texto do Código Penal, que não foram discutidos na audiência de ontem, podem colocar em risco a Lei Maria da Penha. A incorporação pelo projeto de aspectos penais que instituem os juizados especiais criminais e cíveis, conquista daquela lei, pode descaracterizá-los, devolvendo à violência doméstica o status de infração menor. Na análise do observatório, a conciliação, a busca da harmonia familiar a qualquer custo, voltam a ser a prioridade máxima. Acho que eles não viram o índice de reincidência da violência, às vezes num grau ainda maior, quando a mulher submete-se à “volta ao lar”.
A qualificação do crime por “preconceito de raça, cor, etnia, orientação sexual, deficiência física ou mental, condição de vulnerabilidade social, religião, origem, procedência” foi saudado por algumas intervenções, principalmente do movimento LGBT. Este movimento demanda também que a homofobia, lesbofobia, transfobia sejam incluídos como crimes passíveis de punição no novo Código. Também solicitação de inclusão do feminícidio (morte da mulher por ser mulher) e retirada do “infanticídio” foi feita por Amelinha Teles, da União de Mulheres.
Criminalidade e penas
“A criminalidade cresce, a população reivindica mais segurança”, falou o presidente da OAB-SP, Luiz Flávio Borges D’Urso, recém filiado ao novo partido do Prefeito de SP. Na questão dos homicídios, mobilizadora de muitos dos presentes, a maioria estava ali para “fazer justiça” em relação a parentes assassinados. Cada um com sua história particular, incluindo a deputada federal Keiko Ota, presidenta da Frente Parlamentar Mista em Defesa das Vítimas de Violência, que teve o filho seqüestrado e morto em 1997. Outra liderança é Jorge Damus Filho, do Movimento de Resistência ao Crime, defendeu a redução da maioridade porque o assassino de seu filho era menor. Penas de 50 anos e retirada de todos os direitos dos presos foram defendidos.
“A legislação brasileira banaliza o crime contra a vida, e pune mais o crime contra o patrimônio”, disse o desembargador Henrique Nelson Calandra, presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros. “Importante é não enganar o povo”, sentenciou o representante da Associação de Juízes pela Democracia, “o aumento da pena não resolverá o aumento da criminalidade, a impunidade sim é responsável por isso”. Aliás, a impunidade existente no Brasil foi consensualmente criticada pela maioria.
Novas audiência públicas foram prometidas para outras regiões do país. O prazo para a conclusão dos trabalhos é 31 de maio, quando o texto será entregue a José Sarney, o eterno presidente de alguma coisa. O texto do novo projeto pode ser conferido no site do Ministério Público Federal. No site da PRR-3 é possível conhecer as mudanças que serão discutidas. Basta clicar no banner da audiência, acessando o endereço www.prr3.mpf.gov.br
* Representantes de entidades estão sem o nome, pois foi impossível ouvir quando chamados e, infelizmente, na nota publicada pelo TJSP só constam nomes de juristas.