Paulo Freire: lembranças de Ana

A tarde desta quarta-feira, 17 de março, teve um toque de ‘libertação’, se assim é possível dizer. A pedagoga e editora Ana Maria Araújo Freire, 77 anos, – ou melhor, Nita Freire, durante praticamente duas horas viajou por suas lembranças para resgatar momentos importantes da vida do educador pernambucano Paulo Freire (1921-1997), que foi seu companheiro, a partir de 1988 até sua morte, e do qual, se tornou multiplicadora de suas obras. Com olhos e ouvidos ávidos, embarquei junto a professores e estudantes, nesse roteiro, que começou em Jaboatão dos Guararapes, em Recife, retornando à UMAPAZ, no Ibirapuera, onde essa narrativa aconteceu.

Nesse vaivém, uma frase marcante de Freire foi resgatada por ela, como uma chave para compreender o seu pensamento…”Eu luto para transformar o mundo para torná-lo mais fácil…”. E essa afirmação tinha razão de ser, como Ana destaca.

Daqui por diante, deixo vocês à vontade para refletir sobre a fala ‘em primeira pessoa’, de Ana Freire, afim de que seja possível sentir a ‘sensibilidade’ que suas palavras irradiaram sobre fragmentos da história do pensador Paulo Freire.

– …”Eu estive há uma semana, no lugar onde Paulo viveu sua infância – que era um casebre. Continua um lugar miserável…Lá, praticamente da adolescência aos 20 e poucos anos viveu com seus pais, quatro irmãos e com a tia ‘Lurdes’ e a empregada Dadá…Fiquei pensando como todos eles conseguiam se acomodar por lá, naquela casa pequena e escura. Mas foi ali que ele começou a se sentir cidadão do mundo”…

O pai dele foi capitão em PE, era da cavalaria, mas depois de levar uma patada, ficou afastado, o que levou a família a passar dificuldades. Ele ouvia o pai dizer que ia ganhar dinheiro, vendendo rapaduras, mas ninguém comprava…Daí partiu para itens de palha, e nada…e se viu obrigado para mudar com a família para Jaboatão.

Mas Paulo repetia, que mesmo antes, já aprendeu princípios da convivência com a simplicidade a começar a escrever com gravetos das mangueiras do quintal onde nasceu, com o empenho de sua mãe e pai.

…Foi crescendo e, por algum tempo, teve dificuldade de compreender como se escrevia palavras com dois ‘rs’, não sabia diferenciar dois ‘s’ de ‘ç’, mas tinha muita vontade de estudar. O segredo era o seguinte – a curiosidade inata, uma grande virtude que não pode ser descartada ou desincentivada…

…Para conseguir ir a uma escola com melhores recursos era difícil, não tinha condições de pagar o trem ou o custo das parcelas…E Paulo a vida toda teve horror a pechinchar, pois foi marcante em sua infância, relembrar de sua mãe quase não ganhar nada com a venda de produtos ao ceder aos pedidos das freguesas…Com isso, identificou a importância de valorizar o trabalho, a dignidade.

…Nessa atmosfera de pobreza, Paulo Freire, se tornou homem e aprendeu a não ter piedade de si mesmo”, diz Ana. Nessa pequena casa, ele começou a valorizar seus pais. Lá cabiam poucos pertences, que não haviam vendido – o piano de tia Lurdes e a gravata do pai, que resgatavam o período em que foram da classe média…

…Um universo, em que ele aprendeu a jogar futebol com garotos pobres, ler e escrever, a namorar…Com esse sentido de pertencimento, percebeu que não havia diferença entre ele e o filho do operário, do camponês. Algo que destacou durante toda sua vida… A indignação com as lutas de classes sociais já aflorou nesse período da infância e adolescência…

…E aos 16 anos, ele estava cursando a quinta-série, e conseguiu gratuidade para continuar seus estudos, na escola Osvaldo Cruz, que era de meu pai. Lá vinha gente de todo o Nordeste e de todas as religiões, era um espaço ecumênico. Lá ele reforçou a importância da tolerância com o diferente e com o multiculturalismo…E foi nessa época, que eu tive meu primeiro contato com Paulo, na verdade, aos três anos de idade…

…Os anos foram se passando e Paulo se tornou professor de Língua Portuguesa ao receber a classificação de ‘notório saber’, já que não havia licenciatura à época. Aos 22 anos foi estudar na Faculdade de Direito de Recife, porque não havia outro espaço para o pensamento filosófico… Quando estava no último ano, percebeu que seu caminho não era esse. Ao ter de cobrar um dentista a devolução do equipamento que não havia pago, o devedor falou – Se o senhor me tirar isso, não conseguirei pagar, pois vai tirar o sustento de minha família…”. Isso foi decisivo para que visse que não teria condições de agir nesses casos…

Na década de 40, assumiu a direção do Departamento de educação e cultura do Sesi local. Foi aí que começou a pensar a educação para a transformação social. Criticava o que intitulava de educação bancária, pois não enxergava os alunos como vasilhas vazias…O seu conceito era que, por meio das emoções, conseguia perceber a intolerância, a malvadeza, proporcionando a reflexão…Por sua vez, a reflexão ao começar pela prática, é iluminada pela teoria…

A vida fez com que Ana e Paulo se reencontrassem…”Paulo foi meu orientador na faculdade. Ele me dizia – “Nós aprendemos com o corpo inteiro…Só com a raiva (indignação) se pode construir o amor, ao combater a rejeição aos diferentes, e com isso, estou anunciando o amor a essas pessoas…”

…Naquela época, brilhava o pensamento de Piaget… Havia o pensamento sistemático no Brasil, após as guerras, de que o bom vinha de fora. Mas Euclides da Cunha, em Os Sertões, e João Cabral de Mello Neto, com Morte e Vida Severina, começaram a pensar o Brasil como ele é. Com isso, houve a reflexão sobre a proposta do diálogo. Esse diálogo podia ser entre eu e o livro, o teatro, ou melhor, do eu com a objetividade…

…Ao dialogar, Paulo via nesse contexto, que as perguntas são fundamentais – o quê, por quê, para onde, a favor ou contra quem? Assim, se desvela o mundo. E essa premissa, o educador aprendeu com os operários, no dia a dia… Ele dizia que ao apreender, se aprende e se apropria. A educação tem de contemplar as crendices, festas, desejos populares…

Isso fez com que adotasse aulas em que as pessoas se sentavam em círculos, olhando umas para as outras, expressando os seus saberes diferentes e com isso se facilitava a alfabetização de jovens e adultos…

…Paulo criou uma filosofia da educação. Ele dizia – ‘uma certa compreensão ética e crítica da educação”…Segundo ele, o processo de consciência só é acelerado, dessa forma, se tornando libertador. A base do seu pensamento era que havia necessidade de se fazer a leitura de mundo, e acreditar na cultura de paz e de sustentabilidade…

…Ele expressava sua ‘raiva’ e, não, ‘raivicidade’ sobre situações cruéis, por meio da mansidão e humildade…Paulo valorizava ser mais gente…E não menosprezava ninguém… Dizia que nunca a gente perde tempo em conversar com outras pessoas…

…Uma vez ele recebeu reclamações de algumas mulheres, de que falava em seus discursos e textos somente de homens (que na verdade, queria dizer do ser humano)…Mas começou a refletir, que na condição de opressão, a expressão tinha um peso importante, e passou a falar e escrever homens e mulheres… A cerne de seu pensamento, posso dizer, que é a Pedagogia do Oprimido…

Para ele, coisas feias eram as anti-éticas…Ele acreditava que se a gente não tratar o semelhante com humildade, a gente se perde…Em sua concepção, não existia o determinismo marxista…Mesmo em cargos públicos, rodando mundo, dando aulas, palestras, vivendo no exílio e retornando ao Brasil, Paulo foi fiel a ele até o fim…

…E posso dizer, que nosso amor foi realmente radical. Pedagogia da Esperança foi o primeiro livro que ele escreveu, após nos unirmos (ambos éramos viúvos). Nesta fase, sua linguagem se tornou cada vez mais fácil e bonita…
Fonte: Blog Cidadãos do Mundo – jornalista Sucena Shkrada Resk
– www.twitter.com/SucenaSResk