Desigualdades, sustentabilidade e democracia na América Latina

Organizações do Brasil e da América Latina se reuniram na quinta-feira (29) para pensar os desafios da construção da democracia nos países da região. O debate teve como questão central as desigualdades e a sustentabilidade da luta por direitos. Os participantes expuseram um mosaico complexo de questões que estão em jogo na América Latina e apontaram caminhos para a ação coletiva, rumo a uma integração que mire os povos e não as mercadorias.

Uma das tônicas da discussão foi o exercício de pensar alternativas e não modelos. “Estamos acostumados a pensar em modelos. Temos que pensar em alternativas, e superar a fragmentação promovendo novas alianças. Elas nos possibilitarão criar uma totalidade anti-capitalista”, afirma Renato Roseno, advogado, ativista de direitos humanos e assessor do Cedeca-CE.

Para Roseno, o desafio é afirmar uma outra agenda, que integre as agendas política, econômica, ambiental e pós-colonialista dos direitos humanos. “Uma alternativa de poder só pode ser implantada em um projeto político não capitalista”, diz. “O imperialismo não é um chavão. É uma categoria fundamental para entender o mundo”, completa o advogado. Segundo ele, o novo capitalismo se vale de todas as suas antigas armas e também da hegemonia cultural e os governos da América Latina, mesmo aqueles considerados progressistas, são impedidos de implantar projetos anti-capitalistas. “Isso se dá a despeito de a América Latina ser a região em que nasce a bandeira mais instigante que denuncia a insuficiência da democracia representativa, com os movimentos indígenas. A expressão desta contradição é a agenda de infra-estrutura da região”, diz.

Agenda esta orientada para a livre circulação de mercadorias e não para uma integração desde os povos. Segundo o secretário executivo da Rede Brasil de Instituições Financeiras Multilaterais, Gabriel Strautman, a IRSA é um exemplo de agenda que vem sendo implantada por plataformas políticas ditas progressistas e que frustraram a população, pois chegaram ao poder e não alteraram o projeto de desenvolvimento. “Este é um modelo que cria pólos de desenvolvimento integrados ao mercado global, causam sensação de integração, mas provocam desigualdade e problemas para as culturas e comunidades”, diz Strautman.

Ele exemplifica com o caso do Complexo de Manguinhos, no Rio de Janeiro. A região foi beneficiada pelos recursos do PAC do governo federal brasileiro. “O investimento por parte do Estado é algo louvável, mas a população local não foi ouvida e o plano é elevar os trilhos do trem que passa na região, quando o que a população necessita é de moradia digna e saneamento”, explica, dizendo que se houvesse participação da população e transparência, a história poderia ser diferente.

Contradições e complexidades

Enquanto Roseno expõe as contradições da região, exemplificando também com a postura sub-imperialista que o Brasil adota em relação aos demais países, Luciano Wolff, da agência de cooperação EED, da Alemanha, aponta a complexidade da região e o desafio de atuar em um local que esta complexidade todo tempo se confronta com o discurso da imprensa internacional e no chamado “consenso das agências”.

Desigualdade, democracia e sustentabilidade seriam três grandes temas que a atuação na América Latina permite aprofundar e complexificar. “Por exemplo, os países da região são considerados de um perfil muito parecido. Ao trabalhar aqui, vemos que o Brasil é um dos países mais desiguais do mundo, e que a desigualdade não pode ser um conceito atrelado apenas à questão econômica”, diz Wolff. “Quando as organizações parceiras diferenciam desigualdades de gênero, de raça, de trabalho infantil, de questão da terra, apontam para novas perspectivas”, completa.

A questão da democracia também é relida por quem atua na região. Enquanto os países daqui são vistos como dominados por governos orientados pelo social, o trabalho nos permite diferenciar os diferentes modelos de desenvolvimento em curso na região e perceber que estão em disputa dois modelos: um a partir de grandes projetos e outro a partir de inclusão e garantia de direitos”, explica Wolff.

Ele conta que a sustentabilidade das organizações também é um tema complexo, mas que é importante uma sociedade civil forte na América Latina no momento que a região passa hoje. “A sociedade civil é o fermento de uma tensão positiva que deve ser o elemento central e dialético de um processo de desenvolvimento”, diz.

Da resistência ao controle

Para Miguel Santibañes, presidente da ALOP, é preciso dar um passo além nesta tensão positiva, e sair da condição de resistência para a ação de controle. “Precisamos promover uma reflexão teórica e construir política sobre isso. Este é um tema que nos desafia e nos coloca diante dos efeitos desta crise, que tem diversas matrizes, porque a crise é conseqüência de um modelo neoliberal, modernizador e transnacional e vivemos sob os efeitos dela”, afirma Santibañes.

Roseno afirma que a crise é multifacetária. “Não é uma crise econômica, apesar de ter um componente financeiro estrutural. É uma crise de modelo civilizatório, ambiental, planetária e política, que expõe os limites da cultura política, dos projetos políticos e do Estado hoje”, diz.

Uma crise que, para Taciana Gouveia, da diretoria da ABONG, nos obriga a pensarmos quem temos sido na história. “Ficamos presos a estratégias possíveis e esquecemos que precisamos pensar para além das políticas, no âmbito das utopias. Parece que a história está congelada em um presente sem fim, e nós estamos acomodados nas coordenadas do sistema”, diz. “Apolítica não pode ser sinônimo de negociação, mas de construir vida e mudar o mundo”, provoca.

Para Taciana, a América Latina apresenta inúmeros desafios, já que mudou, mas não se transformou. “Podemos ter passado por processos de câmbios políticos, mas enquanto uma família gastar R$ 10 mil para jantar e outra morrer de fome, não houve transformação. Enquanto mulheres apanharem de homens, não houve transformação. Enquanto jovens negros e pobres forem assassinados nas cidades, não houve transformação. Vivemos em uma sociedade de privilégios que luta por direitos”, completa. “E não podemos pensar que existem pobrezas aceitáveis e riquezas aceitáveis”, afirma, questionado a eficácia de programas como os de transferência de renda.

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