FSM: os desafios de construir uma outra história

Foto: Henrique Parra

Há 15 dias, encerrava-se a sétima edição do Fórum Social Mundial em Nairóbi. Todas e todos que lá estiveram possivelmente defrontavam-se com duas ordens de questões que, à primeira vista, podem até parecer opostas, mas que na realidade são constituintes do fazer histórico, ou seja, a compreensão de tudo o que já fizemos nesses breves sete anos e de tudo o que precisamos construir a cada dia para mudar a vida.

Sendo o Fórum Social Mundial uma criação política recente – ainda que resultado de anos de lutas de vários sujeitos -, é surpreendente, até mesmo para nós que o fazemos, a força aglutinadora, a visibilidade e a importância política deste processo. E realizá-lo no Continente Africano foi, com certeza, um dos mais significativos exemplos. Foram dois anos de intensa preparação e mobilização para as organizações e movimentos da região e também para todos/as os/as outras/as que, a partir dos nossos lugares, exercitamos o pensar e a ação de, como bem denominou Cândido Grzybowski em entrevista recente [1], colocar os povos africanos no nosso mapa.

Contudo, a cada vez que nos deslocamos no gesto político de espalhar o FSM para todos os cantos do planeta, vamos conhecendo e reconhecendo as complexidades, contradições e desigualdades que marcam a sociedade em que vivemos, que repercutem e também se expressam nos modos com cada momento e em cada lugar onde o Fórum acontece. Por isso, mais do que uma métrica que compare quantos/as estiveram em cada uma das suas edições ou quantas atividades foram realizadas, é preciso que aprofundemos nossas análises no sentido de apontarmos as contradições que precisamos entender e resolver, para que o FSM continue sendo um dos processos por meio do qual damos sentido e futuro à nossa utopia de uma sociedade mundial radicalmente justa e democrática, que realizemos cotidianamente as possibilidades de um outro mundo.

O projeto político do FSM supõe e requer a diversidade dos sujeitos, mas tal diversidade implica reconhecer também as desigualdades, que estão na base da constituição desses sujeitos e suas lutas, e as condições e contextos políticos em que elas ocorrem. Além disso, se há sujeitos em luta, há necessariamente os seus antagonistas, surgindo assim uma questão fundamental que se fez presente no VII FSM, mas que dele não é exclusiva: na pluralidade dos sujeitos, cabem também os antagonistas ? A nossa carta de princípios diz que não, mas então como explicar a presença de forças políticas conservadoras, que se opõem às lutas dos movimentos feminista, lésbico e gay, que negam os direitos sexuais e os direitos reprodutivos?

Para nós, é uma impossibilidade política seguirmos sem distinguir divergência de antagonismo, pois se os conflitos são constituintes de qualquer ação político-democrática, dada a complexidade das contradições que enfrentamos, o mesmo não se dá com relação aos processos baseados em tão radical antagonismo, na medida em que aí o que está na base não são contradições, mas antinomias. Na situação que citamos como exemplo, o que está em questão não é uma discordância das forças conservadoras com relação às lutas e aos direitos, mas, sim, a recusa de reconhecer as mulheres, sejam elas hetero ou homossexuais, e os homens gays como sujeitos tanto em sua dimensão individual como coletiva.

Um outro aspecto que precisamos nos deter se refere aos recursos financeiros para a realização do FSM. Parece-nos que o fundamental aqui é analisarmos o sentido político das nossas relações com os sujeitos com os quais dialogamos, para financiar as diversas ações que constroem esse processo. Afirmamos os sentidos políticos por considerarmos que mais que apoio ou patrocínio, aportar recursos significa reconhecer a importância estratégica do FSM na dinâmica política mundial. Contudo, tal reconhecimento nem sempre se traduz numa concordância total com o projeto político que o FSM encarna e expressa, pois interesses distintos e, em alguns casos, provavelmente antagônicos também se fazem presentes. Como podemos evitar o risco de uma diluição dos nossos princípios políticos ao mesmo tempo em que mantemos o respeito à autonomia dos movimentos, organizações e comitês organizadores locais no fazer de cada um dos momentos desse processo?

Ressaltamos ainda a ampliação ou mesmo reversão da tão comum idéia de que “se vai ao Fórum”. É cada vez mais urgente que fortaleçamos a noção política de que o FSM é um processo de todos os dias, que faz e é feito das nossas ações em todos os pontos do mundo onde há lutas por justiça e igualdade. Isto significa também construirmos estratégias metodológicas que possibilitem que, em cada lugar, o FSM não nos seja estrangeiro e que as pessoas que lá habitam sejam também pertencentes a esta história que escrevemos.

O Fórum Social Mundial não é um sujeito, mas um espaço onde múltiplos sujeitos se movimentam; não tem fronteiras, porque a nossa utopia é mudar o mundo; não tem tempo, porque nosso tempo é passado, presente e futuro. Por assim ser, ousamos inventar de novo com os dias mundiais de lutas, que se realizarão em janeiro de 2008. Isto vai requerer de nós um esforço para superarmos nossas contradições, fortalecendo e ampliando todas as possibilidades de justiça, igualdade, democracia, dignidade e alegria. Pois como nos dizem os versos da canção de Chico Buarque e Pablo Milanês:

A História é um carro alegre
Cheio de um povo contente
Que atropela indiferente
Todo aquele que a negue…..
Quem vai impedir que a chama
Saia iluminando o cenário
Saia incendiando o plenário
Saia inventando outra trama.


1 Em entrevista ao programa Entre Aspas, produzido e exibido pela Globo News , 1º/2/07.

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