A recriação que passa pela África

Foto: Henrique Parra

Desde que o 7º Fórum Social Mundial se encerrou em Nairóbi, no dia 25 de janeiro, diversas análises e comentários têm aparecido, seja na grande imprensa, seja nos sites especializados. Uns procuram mostrar que a própria intuição destes fóruns está esvaziada, se já não o era desde o início. Outros setores tentam ver o saldo deste processo e descobrir o que este fórum, pela primeira vez, ocorrido na África do Leste, (Em 2006, Bamako foi um fórum policêntrico) trouxe de novo e promissor para a caminhada de transformação do mundo.

Ao assumir o desafio de, pela primeira vez, fazer um fórum mundial na África e optar por Nairóbi, a comissão internacional do FSM sabia que corria riscos. Quênia é um dos países de maiores desigualdades sociais na região, está em vésperas de eleições presidenciais com lutas internas e o governo local tinha medo de que tantos milhares de pessoas, vindas de todo o mundo, pudesse complicar mais ainda o quadro.

A primeira novidade do Fórum foi ganhar um rosto africano. Enquanto nos fóruns anteriores, os africanos eram sempre o grupo menos numeroso, desta vez, das 60 mil pessoas inscritas no 7º FSM, mais de 85% vieram da própria África. Além disso, outro ponto importante foi que, em Nairóbi, o FSM foi obrigado a dar um passo a mais na direção de popularizar-se. Não se pode dizer ainda que evoluiu de natureza. Deixou de ser um encontro de intelectuais e pessoas de classe média solidários/as aos pobres para ser realmente um fórum dos pobres. Esta transformação é lenta e complexa. Podemos, entretanto, afirmar que se deu um passo neste sentido. Desta vez, o Fórum teve grande participação da população pobre das favelas de Nairóbi, cidade de quatro milhões de habitantes, dos quais quase três milhões vivem em mais de 200 barracópolis. Em um país, cujo custo de vida é muito alto, essas pessoas têm de sobreviver com menos de um dólar por dia. Apesar da contradição de que a inscrição no Fórum era ainda muito cara, organizações de base ajudaram e o Fórum acabou contando com grande participação dos mais pobres. Foi a primeira vez que o Fórum começou e se encerrou com uma marcha que partia de Korogocho, uma das maiores favelas de Nairóbi. No encerramento, conseguiu envolver muitos jovens atletas, todos moradores de favelas, que participaram de uma maratona de corrida através de dez favelas da cidade, até o parque central, um caminho de 15 km.

Outro ponto “novo” do 7º FSM que, certamente, se deve às culturas da África foi uma maior abertura à dimensão espiritual e mesmo religiosa. No recinto do Fórum, muitas tendas eram ocupadas por entidades pastorais como a Caritas e por grupos ecumênicos. A Comissão Justiça e Paz da ordem franciscana animou um seminário sobre o diálogo inter-religioso. Houve também grupos budistas e muçulmanos com participação em diversos seminários. Desde os fóruns anteriores, desejava-se esta abertura maior, não tanto às religiões e sim à dimensão espiritual presente e atuante em tantos trabalhos de solidariedade. O desafio é que estes grupos religiosos entrem, de fato, no espírito da Carta de Princípios do FSM. Alguns grupos religiosos que, pela primeira vez, participaram ativamente do fórum faziam campanha aberta contra bandeiras de diversidade sexual e questões que a maioria dos movimentos feministas defende.

Qualquer latino-americano que assiste hoje, em nosso continente, a revalorização das culturas e religiões de matriz africana, podia lamentar que, entre as quase 2000 atividades (seminários, oficinas e conferências) que tomaram os cinco dias do 7º FSM, não havia praticamente nenhuma sobre as culturas e religiões ancestrais da África. Isso revela tanto que as pessoas e comunidades ligadas a estas tradições ancestrais ainda não se sentiram envolvidas pelo Fórum, como também que as organizações do continente, responsáveis por tantas atividades do FSM não valorizam ainda estes caminhos espirituais. Em toda a África, existe um movimento de recuperação destas tradições para um trabalho de educação de paz, de ecologia e de vida. Chamam-se “museus vivos de paz” e várias aldeias se consagram a esta revalorização das histórias antigas, de seus objetos rituais e das suas crenças espirituais. Pena que o FSM não tenha valorizado isso.

As questões de sempre voltaram na África com mais acuidade: é possível ainda o FSM continuar com o seu caráter de espaço livre de discussões, mas sem concluir nada e nem querer chegar a conclusões oficiais ou práticas. Na véspera do encerramento do fórum, a assembléia dos movimentos populares, que articula e reúne grupos e movimentos do mundo inteiro, decidiu várias atividades para 2007 e reforçou a luta mundial pela água como direito universal de todos e que, portanto, não pode ser vendida nem menos ainda privatizada. Vitórias como a do Uruguai que, na própria constituição, oficializou que a água é bem público e não pode ser privatizada, animam a todos que lutam por isso no mundo todo. Alguns educadores africanos se perguntavam: depois de participar da festa de confraternização humana que foi o fórum, essa multidão de pobres voltam a suas favelas e reencontram a dureza do dia a dia. Será que isso não os levará a pensar que o Fórum não muda nada na realidade? Uma senhora de comunidade respondeu: “O Fórum nos ajudou a descobrir que não estamos sós. No mundo inteiro, muita gente está conosco neste caminho. E encontrar essas pessoas nos ajudou a ver mais claro a meta do caminho: um outro mundo não somente é possível como está sendo preparado”.

* Monge beneditino e autor de 26 livros. mosteirodegoias@cultura.com.br

One thought on “A recriação que passa pela África

  1. A recriação que passa pela África
    Olá Marcelo…
    Sou José Aparecido da Associação dos funcionários do grupo Santander Banespa…
    Estive em Nairobi e também vivi de perto essa sua narrativa…muita emoção e diversos momentos.
    Tenho várias imagens comigo, mas infelismente na marcha por dentro de Korogosho, eu já não tinha mais memória em minha câmera para registros, ou seja…não tenho uma foto sequer do momento mais emocionante de todo o fórum…
    Ficaria muito feliz se pudesse me mandar algumas imagens de korogosho, e me coloco a disposição para lhe encaminhar algumas de meu arquivo…

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