Nas últimas três décadas foram assassinadas aproximadamente 91 mil mulheres no Brasil, 7º lugar no ranking dos países onde há mais esse tipo de crime. O que mais assusta estudiosos do tema e feministas é o progressivo crescimento do feminicídio, que vitimou 43,5 mil mulheres só nesta última década, passando de 1.353 para 4.297 mortes por ano, um aumento de 217,6%! Os dados são do Mapa da Violência 2012, estudo do Instituto Sangari, baseado em dados do Sistema de Informações de Mortalidade – SIM – da Secretaria de Vigilância em Saúde ( SVS), do Ministério da Saúde e do Ministério da Justiça. Outra confirmação deste último Mapa, que traz um balanço da violência homicida desde 1980, é a de que os homens morrem na rua, as mulheres morrem dentro de casa. Isso acontece em todas as regiões brasileiras e em todas as classes sociais. E sabemos que o número real é bem maior, devido a má ou não notificação de muitos casos.
Acontece que o Brasil tem também uma das leis mais avançadas para a superação da violência contra a mulher – a Lei Maria da Penha. Reconhecida internacionalmente, a lei que completa seis anos em agosto não tem conseguido diminuir os índices do feminicídio brasileiro. Questionada e desrespeitada pelo machismo institucionalizado em nosso Judiciário, o Supremo precisou legislar positivamente sobre sua constitucionalidade e aplicação pelo Ministério Público, em fevereiro deste ano, para dirimir possíveis dúvidas de governadores, secretários de segurança e justiça, delegados e juízes.
No Congresso foi constituída uma CPMI (Comissão Parlamentar Mista de Inquérito) para verificar o que acontece na real com a aplicação da Lei Maria da Penha, e também com os recursos do Pacto Nacional contra a Violência à Mulher, programa da SPM (Secretaria Nacional de Políticas para as Mulheres), distribuídos aos governos estaduais. “O relatório será ‘publicizado’ para amplo conhecimento, inclusive de órgãos internacionais que olham para o Brasil e nos cobram, devido à Lei Maria da Penha, exemplar em outros países”, disse a Senadora Ana Rita, relatora da CPMI, na última sexta-feira, 29. A senadora, junto com parlamentares paulistas membros da Comissão, como a Senadora Marta Suplicy, as deputadas federais Janete Pietá e Keiko Ota, concederam entrevista coletiva à imprensa. Audiência Pública na Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp) foi realizada nesse dia, para inquirir gestores do Estado, coroando uma série de diligências feitas pelas parlamentares em órgãos de governo, equipamentos sociais e ouvindo as mulheres.
Audiência pública revela omissão do governo paulista
Estado mais populoso do país, São Paulo tem também o maior índice em números absolutos de feminicídio. Só no ano de 2010, foram 663 assassinatos de mulheres, 3,1 mortes por ano em cada grupo de 100 mil, segundo o Mapa da Violência 2012. Na cidade de São Paulo o índice é maior – 4,8 mortes/100 mil habitantes. Entretanto, o governo do Estado de São Paulo foi o último a assinar o Pacto contra a Violência do governo federal, só o fazendo depois de muita pressão dos movimentos feministas e com 2 anos de atraso. Estado econômica e culturalmente mais forte do país, não tem no governo estadual qualquer órgão voltado às políticas públicas dirigidas às mulheres, dificultando ainda mais o já difícil controle social dos recursos vindos para tal. São escandalosos também os ridículos números de equipamentos como delegacias da mulher, casas de acolhimento às vítimas de violência, juizados e outros previstos pela legislação para a prevenção e combate da violência doméstica.
“A maleabilidade da lei, que é dura, rígida, forte, não existe mais depois da declaração do Supremo”, disse a senadora Marta Suplicy, que considera a Lei Maria da Penha uma conquista tão importante para as mulheres como o direito ao voto. Ela denunciou que o número de processos abertos no Estado é metade do número de queixas apresentado, devido a incompetência do atendimento nas delegacias, de processos mal formulados, de falhas no encaminhamento da queixa. Marta chama a atenção para outro aspecto da violência doméstica, que é a sua interiorização; conforme dados da Secretaria de Segurança Pública – de setembro de 2011 a maio deste ano, tivemos 55.174 casos de mulheres vítimas de lesão corporal dolosa e, destes, 34.906 casos foram no interior. “Exigimos o cumprimento da Lei Maria da Penha na sua totalidade. Lei novinha, conhecida pela população, só que precisa de estrutura para ser cumprida e exercida!” Segundo a senadora , muitas vezes o MP não pode atuar devido ao mal preenchimento do inquérito, que é mandado de volta para a Delegacia. “Para o Estado tanto faz a maneira como a mulher é tratada, fica clara a não importância do estado de SP com as mulheres que sofrem violência!”
São Paulo foi pioneiro nas políticas para as mulheres ao criar a primeira Delegacia da Mulher, o primeiro serviço de abortamento legal do país (hoje desativado), a primeira casa de acolhimento à mulher vítima de violência – Casa Eliane de Grammont (hoje semi abandonada), graças a luta incansável das feministas nos anos 70/80. Entretanto hoje está na vanguarda do atraso em relação a outros estados, não existindo sequer organismo nem rubrica para políticas de gênero. Dos 645 municípios, apenas 121 tem delegacias, apenas 1 Juizado especializado para todo o Estado; os funcionários não estão capacitados para atender a situação, gerando ainda mais humilhação e violência, segundo a experiência narrada pelas representantes das organizações não governamentais que atendem as mulheres. Enfim, diversas exigências previstas na Lei Maria da Penha para que tenha eficiência são desrespeitadas, particularmente em São Paulo. “As delegacias e os juizados especiais são condições fundamentais para a aplicação da lei”, falou a deputada Janete Pietá. “As delegacias não funcionam 24h, nem nos feriados, não há capacitação, nem multidisciplinaridade, as medidas protetivas aqui no Estado são rejeitadas pelo Judiciário”.
Secretários devem explicações à CPMI
A relatora da CPMI explica que audiências e diligências estão sendo realizadas em vários estados, a começar dos mais violentos. “O Estado de São Paulo tem responsabilidade maior porque ao invés de avançar, retrocedeu”, falou a senadora, “o que acontece aqui repercute nos demais estados brasileiros e se aqui retrocede repercute negativamente “. Coordenando a mesa da audiência, a Senadora Ana Rita relembrou os casos emblemáticos de assassinatos de mulheres ocorridos em São Paulo e bastante explorados pela mídia, antes de iniciar o questionamento dos representantes das Secretarias estaduais responsáveis na questão. Nenhum secretário ao menos se dignou a comparecer.
Lamentável essa postura hipócrita e anti-republicana dos responsáveis pela governança no Estado de São Paulo, que enviam funcionários, alguns concursados, de carreira, para colocar “a cara à tapa”. Escalados para dar respostas num tema onde inexiste uma política na audiência pública, as informações foram, de maneira geral, incompletas, genéricas, tergiversatórias. Isso, quando não culpabilizadoras da mulher, “que perdoa o marido, desiste da queixa, não dá continuidade, dificulta colher provas”. Mas deixam claro que não há planejamento estratégico, desconhecem números elementares, dependem de novos concursos, do volume de serviço na região, época do ano… enfim, violência contra a mulher não é prioridade.
A desinformação era tanta que os Secretarios da Segurança Pública, Antonio Ferreira Pinto, e da Justiça e Defesa da Cidadania, Eloisa de Souza Arruda foram convocados publicamente pela relatora da CPMI a comparecer em reunião da Comissão em Brasília. O único registro positivo na Audiência foi trazido pelo representante da Secretária Eloisa, Fabiano de Paula. Ele anunciou a criação de uma Coordenadoria de Políticas para as Mulheres, a ser instalada naquela secretaria. Ocorre que o anúncio “oficioso” já havia sido feito no dia anterior pelo governador do Estado, horas depois de mal estar causado pela resposta das parlamentares da CPMI à sua indagação sobre “de onde ele tiraria dinheiro para realizar ações”. As parlamentares informaram então ao governador, que cerca de R$ 32 milhões foram repassados pelo programa federal ao Estado de São Paulo, ao qual cabe entrar com sua contrapartida e instituir ações de combate a violência.
A delegada Rose, presidente do CECF (Conselho Estadual da Condição Feminina) e nomeada pelo governador para administrar os recursos do Pacto de enfrentamento à violência contra a mulher relatou o que ela considera avanços, sobretudo em cidades do interior. Ela comemora, por exemplo, existirem 67 organismos municipais de políticas de gênero em 645 municípios, e diz existirem 144 projetos sendo desenvolvidos com ações diversas. Os poucos dados apresentados pelas Secretarias só confirmavam o descaso com o tema da violência contra as mulheres, por parte do governo estadual de São Paulo. Aliás, descaso estendido às políticas de saúde integral da mulher, ao desrespeito pelos seus direitos sexuais e reprodutivos, aos seus direitos humanos. Foi lembrado o caso amplamente divulgado de mulheres dando à luz algemadas no sistema prisional paulista. As técnicas concursadas diziam também repudiar ações de insensibilidade no atendimento dos hospitais.
Houve ainda informações contraditórias, como em relação ao número real das notificações compulsórias de violência doméstica. Para a Justiça, 18.275 notificações foram feitas de 1998 até maio de 2012. A representante do Secretário da Saúde, Karina Barros, trouxe informações bem diferentes – só em 2010 foram recebidas 21.680 notificações de violência. A senadora Ana Rita informou então que exigirá das autoridades competentes esses dados para entrarem no seu relatório final, que deve ser apresentado e votado em agosto. A audiência pública foi acompanhada por mais de 500 pessoas, a grande maioria de mulheres ativistas e feministas, que tiveram suas denúncias apresentadas na parte da manhã, na própria Assembléia Legislativa.