“Queremos colocar na agenda os bens comuns imateriais, os bens em forma de cultura, memória, história, que não está contada do ponto de vista das mulheres”, falou Rita Freire, fundadora e editora da Ciranda na abertura do painel “Mulher, Mídia e Bens comuns”, dentro da programação do II FMML (Forum Mundial de Mídias Livres), que acontece na Cúpula dos Povos, Rio+20. “A História é um bem comum e temos que lutar pela nossa identidade”, continuou a midialivrista, acrescentando sobre a metodologia desta Cúpula, o compromisso das mulheres em colocar o machismo e o patriarcado como causa estrutural da crise sistêmica em que o capitalismo nos colocou. Pela primeira vez, o Fórum de Midias Livres organiza um painel específico com a visão das mulheres, parceria desta Ciranda, do Instituto Patricia Galvão (IPG) e da Rede Mulher e Mídia.
Encerramento da manifestação feminista na Cúpula
Contra a mercantilização da vida e em Defesa dos bens comuns, como se define esta Cúpula dos Povos na Rio+20, é tema privilegiado para as mulheres que sempre tiveram esses objetivos na sua agenda, pois conhecem bem o que é ter até seu corpo mercantilizado. “A comunicação e a cultura estão colonizadas pelo poder econômico”, seguiu Rita Freire. “Estamos aqui debatendo a descolonização de nossas redes sociais, para nos libertarmos do ‘jardim murado’ que é o Facebook. Descolonizar a comunicação é construir as nossas próprias redes”. A ativista destacou o fato das mulheres também desenvolverem tecnologia da informação, anonimamente, sem colocar um ritmo competitivo, talvez por isso sejam sempre chamados homens a falar sobre o assunto.
A voz pública das mulheres
Mulheres sempre trabalham para dar voz às pessoas e às lutas que estão nas ruas, como o exemplo das convidadas para este painel do FMML. Maria Pia, da AMARC (Associação Mundial de Rádios Comunitárias), diz que o feminismo a ensinou a falar das práticas das mulheres, olhar o lugar de expressão pública das mulheres. “Ainda que o senso comum diga o contrário”, acredita Maria Pia, “a diferença entre homens e mulheres ainda é muito grande; devemos fazer dessas diferenças uma potencialidade política pra mudar um mundo tão desigual”. Ela destaca a atuação voltada para a comunidade por parte das mulheres, a importância de “fazermos nossas audiências entenderem que os bens comuns devem ser compartilhados e não tratados apenas como questão de ganância financeira”.
A comunicadora elogiou os princípios da Ciranda como fundamentais neste processo de entendermos a comunicação como um direito, para “além da questão de mercado e da titularidade de quem faz comunicação. Quando falamos em frequências de rádios, estamos falando de um bem comum da humanidade, falamos de um direito que não conseguimos praticar pela intolerância dos governantes, desconhecimento dos políticos tradicionais e desconhecimento até dos movimentos sociais”. A liderança da AMARC falou ainda das questões colocadas pelo movimento feminista, “mas que não são temas bem compreendidos, e esse buraco que tem a ver com a grande mídia que captura as consciências. Queremos fazer radio que fala para a maioria, que se escute e que tenha a ver com políticas públicas”.
Maria Cienci, da ALER – Associação Latinoamericana de Educação Radiofônica, que atua com os movimentos sociais, diz que “na radio de onde venho, sempre parece que temos que justificar como mulheres alguns temas, é preciso desconstruir que os homens sabem de política e nós mulheres das compras!” Indignada com a visão dicotômica do mundo, a ativista venezuelana defende a desconstrução do nosso modelo de desenvolvimento e acha que muitas vezes deixamos decisões para outros, nos vitimizamos e acredita na importância de incidirmos com os nossos temas nos espaços de luta geral.
Da Comunicação dependem outros bens comuns
Lottie Spade, ativista da comunicação em Detroit (EUA), defende que “comunicação é direito humano, não só a mídia mas a tecnologia, que continua mantendo comunidades afastadas e com as suas vozes silenciadas”. Ela atua em diversas organizações na sua cidade, em defesa da justiça política, ambiental e alimentar, que tem por princípios o acesso desses direitos, bem como da informação, deve ser para todos, a infraestrutura e todas as formas de comunicação. Lottie diz que faz um trabalho intergeracional, onde os jovens ensinam os idosos sobre os benefícios, mas também sobre os malefícios da Internet e a propriedade pública é um princípio, como também criar nossas próprias ferramentas. “Desmistificamos a tecnologia, falamos da pegada tecnológica, ensinamos as pessoas e toda a quadra pode partilhar um acesso”, por exemplo. “Fizemos um trabalho com as mulheres para elas criarem mensagens de segurança alimentar para as crianças, provocamos a discussão de porque é tão mais fácil encontrar McDonald e assemelhados do que comidas naturais em Detroit”. A feminista afro-americana diz que devemos usar e mudar a internet, ferramenta que grandes empresas estão usando para tomar decisões em nosso nome. “Precisamos compreender que nada substitui a comunicação, não basta a ferramenta”.
Hoje na passeata
Ora, as mulheres sempre foram responsáveis pela “administração” dos bens naturais. Sobretudo na escassez destes, é a mulher que “tem que se virar” para garantir água e alimento para sua família, especialmente os filhos. Entretanto, o capitalismo invisibiliza o trabalho das mulheres, as soluções criadas por elas e a gestão que conseguem fazer dessa escassez. Assim como invisibilizam a história, a memória e as lutas de vários povos oprimidos sem direitos políticos, como os palestinos, os curdos e os saarauis, com participação neste II FMML. Como disse Rita Freire, “os povos que não tem território vieram aqui para se expressar, pois é clara a relação entre a falta de solidariedade política e a necessidade da comunicação”.
“Nas guerras”, diz Soraya Misleh, ativista da comunicação e pela libertação da Palestina, “em que estão em disputa os bens comuns, as mulheres são as que mais sofrem, na Palestina elas nem conseguem fazer pré-natal, tem os filhos nas zonas de controle”. Ela fala também do estereótipo que é vendido pela mídia da mulher árabe e dos árabes em geral. “Orientais e ocidentais são contrapostos e os primeiros são os bárbaros, terroristas. A mulher árabe é sempre um ser exótico, submisso, com algo escondido por trás dos véus”, lamenta Soraya. “Toda árabe é muçulmana, outra generalização irreal. A mídia reproduz essa forma de retratar os árabes para manter o sistema hegemônico global”. A militante palestina lembra que a mídia tratou como fenômeno as mulheres indo para a rua na “Primavera Árabe” e conta que as mulheres palestinas sempre estiveram lado a lado com os homens, muitas vezes na linha de frente, os movimentos feministas árabes existem desde o início do século XX e as lutas também. “Nas revoluções sociais, a mídia teve papel importante, mas foi ferramenta”, diz Soraya, contando que hoje há uma blogueira tunisiana em greve de fome, mostrando que a revolução continua seu curso, mas essa informação não chega até nós.
Produtoras e reprodutoras da vida que são, as mulheres sempre defenderam uma relação harmoniosa com a natureza. São elas as conservadoras das sementes, as cultivadoras das plantas medicinais, as defensoras das fontes de vida, da água, da segurança alimentar, da paz. Mas isso só é possível com o direito à comunicação democratizado e com liberdade de expressão para todos e todas. Sabemos que da informação e da comunicação depende a mudança dos paradigmas em que estamos vivendo ou a continuidade da destruição da vida e do planeta. As mulheres estão em muitas atividades desta Cúpula, inclusive atuando na Rádio Cúpula, fazendo a cobertura de tudo o que acontece, sendo protagonistas da grande manifestação lilás realizada hoje no Rio de Janeiro. Estaremos defendendo fortemente a inclusão da comunicação e a cultura como prioridades no eixo de convergência em defesa dos bens comuns contra a mercantilização.