A circulação de conteúdos e bens culturais na Internet e as questões de sua cadeia produtiva, impacto econômico e interrelações com as políticas e a indústria da cultura ganharam espaço para aprofundamento de debates no Comitê Gestor da Internet do Brasil (CGI Br), com a reinstalação de uma Câmara de Consultoria dedicada esses temas.
A primeira reunião aconteceu entre os dias 11 e 13 de julho, em Porto Alegre (RS), durante a sexta edição do Fórum da Internet do Brasil, promovido pelo CGI.br.. Além de seminários, exibição de documentários e desconferências propostas pelos participantes, o Fórum foi espaço para reuniões de quatro câmaras de consultoria. Seus debates, organizados em forma de trilhas temáticas, preencheram o primeiro dia do evento (video) e os resultados foram apresentados na plenária final, que fechou o evento.
Coordenada pelos conselheiros do CGI.br, Marcos Dantas Loureiro, representante da comunidade científica e tecnológica, e Henrique Faulhaber, representante Indústria de bens de informática, de bens de telecomunicações e de software, a Câmara de Conteúdos e Bens Culturais do CGI.br teve como objetivo “debater e documentar contribuições da sociedade (…) relacionadas às políticas culturais e de produção de conteúdo no contexto da governança e uso da Internet no Brasil”.
Após a fala dos novos integrantes da câmara, que apontaram uma vasta agenda a discutir, das licenças à necessidade de incentivo para a indústria brasileira dos games, do uso da Internet na educação ao fomento de conteúdos audiovisuais para a rede pública de comunicação, participantes foram divididos em grupos, com perguntas orientadoras. Deveriam, a partir do debate, apresentar consensos, dissensos e pontos a aprofundar sobre os seguintes temas:
1- Elementos que devem fazer parte de uma agenda para o desenvolvimento no Brasil da economia da cultura e de cadeias produtivas relacionadas as artes e cultura, apoiadas em ferramentas digitais, principalmente Internet, contemplando atores de diversos setores.
2- Elementos relacionados aos direitos autorais no ambiente digital que devem ser discutidos para fomentar a economia da cultura.
3- Elementos necessários para uma política de educação que considere a cultura e a Internet
Compartilhado X remunerado
O pouco tempo e a condição das câmaras como instâncias permanentes de discussão podem ter contribuído para uma agenda com mais pontos a aprofundar do que efetivamente debatidos no primeiro do VI Fórum da Internet no Brasil.
Os grupos se reuniram por aproximadamente uma hora, produziram relatos sobre os debates e no final do dia ocorreu a plenária da trilha de bens e conteúdos culturais. Neste momento a polêmica sobre a pirataria no ambiente digital dominou o debate, o que levou os coordenadores da trilha incluírem a seguinte observação no relato final; “o uso da expressão “pirataria” para referenciar práticas de compartilhamento de conteúdos por usuários/as da Internet é motivo de dissenso e precisa ser aprofundado”.
De fato, no primeiro grupo, do qual participamos, o debate se destacou pela posição de atores de mercado, relacionada à sustentabilidade dos negócios, gerando visões bastante antagônicas. Na plenária da trilha, as diferenças ficaram evidentes no momento em que a defesa da cultura do compartilhamento livre, natural às práticas da Internet, foi questionada por um representante dos produtores audiovisuais reivindicando a garantia de remuneração pelo que é produzido, ou a “monetização” do conteúdo trafegado na rede. Diferente do exemplo dos mangás, citado na plenária pelo advogado André Lucas Fernandes, membro do Observatório da Juventude/SIG Youth/Internet Society (ISOC), as produções mais caras de criações audiovisuais dependem de financiamento prévio, ou de um retorno financeiro que pode não acontecer quando o produto cai na rede, mesmo obtendo grande circulação. Nesse caso ocorrem remunerações indiretas, quando ocorrem.
Já os quadrinhos japoneses, que não eram acessíveis no Brasil, chegaram por meios alternativos e tornaram-se lucrativos. “Jovens baixavam os mangás, scanneavam e traduziam os balões e disponibilizavam os títulos aqui no Brasil. Inicialmente, as editoras brigaram com esses scantrad (tradutores de scan), mas depois de algum acirramento, elas perceberam que, ao invés de atiçar o direito autoral contra menores de idade – e alguns maiores –, poderiam usar o trabalho como um grande seletor dos títulos interessantes de trazer para o mercado nacional, dando sempre tiros certeiros”- conta André.
Um outro questionamento foi feito por produtores informais de conteúdos que reivindicam o direito a preservar a informalidade jurídica e mesmo assim ter acesso à remuneração – algo que parece descartado na era dos microempreendimentos, mas que contraria alguns coletivos. Com isto, um dissenso apresentado na plenária final foi sobre “a necessidade de formalização jurídica para atuar como produtor independente”. Como proposta a aprofundar foi sugerida a “criação de uma plataforma nacional para a distribuição de conteúdo de forma a remunerar o produtor independente”.
Direitos autorais, sem perspectiva de solução
A ênfase do debate no retorno econômico sobre a circulação de conteúdos chegou a ser questionada, por escapar, possivelmente, ao escopo do CGI.br no debate acerca “das políticas culturais e de produção de conteúdo no contexto da governança e uso da Internet no Brasil”. Sabe-se que a Internet modifica a economia ao introduzir o compartilhamento e reduzir a escassez de conteúdos e que, portanto, é fundamental que este debate tenha espaço dentro da câmara. Mas de fato evidencia os conflitos da transição da cultura do lucrativo para o compartilhado e a necessidade de conciliação entre a licença aberta e a remuneração justa. O debate no Brasil foi simultâneo à divulgação, dia 12 de julho, pelo Grupo Europeu de Sociedades de Autores e Compositores (Gesac) de um manifesto de artistas e cineastas europeus em defesa de melhor remuneração por direitos autorais na Internet.
A adequação do direito autoral aos tempos da Internet parece um debate sem solução. “O direito autoral faz o alvo dele tomar veneno … achando que toma o remédio”, disse Andre Luis Fernandes, lembrando que o direito não conseguiu elaborar uma norma que concilie interesses. Ele cita Lawrence Lessig, ao apontar a ausência de um modelo, no direito, que dê conta dessa complexidade. “Em parte pelo motivo de não termos conseguido abalar, apesar de tanta crítica já feita, esse modelo de direito autoral – abalar no campo teórico, pois na prática esse muro está mais do que trincado”. Ele acredita que a solução esteja na observação das novas práticas e experiências, como no caso dos mangás, ou dos músicos pernambucanos que se viabilizaram por meio de financiamento coletivo associado à difusão pela rede. Aponta ainda para as novidades que virão de um futuro próximo, quando muitos dos postos de trabalho de hoje serão eliminados pelas novas tecnologias e o possível deslocamento das pessoas para atividades criativas e intelectuais exigirão novas soluções.
O tema está no centro de outras disputas mais acirradas e que esbarram nos princípios do Marco Civil da Internet, que propõe a Internet voltada à promoção do acesso à informação, ao conhecimento e à participação na vida cultural (inciso II, art. 4º). No Brasil, segundo dados de 2014 da pesquisa TIC Domicílios do CETIC.br, 67% dos internautas têm o hábito de compartilhar conteúdos na web, gerando negócios que nem sempre beneficiam quem produz ou quem navega. Formas de remuneração indireta de conteúdos preocupam quando estão associadas à venda dos dados cadastrais dos usuários a empresas, ou a invasão das páginas por banners e pop-ups publicitários indesejados.
Ao focar na economia da cultura como tema central da discussão a trilha apontou alguns campos de debate a aprofundar, mas deixou de endereçar outros temas atuais e relevantes que precisarão ser retomados pela Câmara do CGI.br em suas atividades permanentes.
Acesso e produção de conteúdos e bens culturais públicos
A câmara de conteúdos e bens culturais poderia servir como fórum privilegiado para se pensar a relação da Internet com o acesso, a fruição e a interatividade com os canais e conteúdos produzidos nos sistemas públicos de comunicação, a exemplo da TV Brasil, TV Cultura, rádios, emissoras educativas e canais da cidadania. A rede é utilizada por emissoras para o intercâmbio de conteúdos e distribuição de notícias e áudios por agências públicas. Entretanto, fica para o futuro a discussão da Internet como um elemento estratégico na estruturação do sistema público, e as políticas necessárias de estímulo a conteúdos multiplataformas, bem como sua regionalização, diversificação e características inclusivas. De forma discreta foi colocado apenas a proposta de que “obras audiovisuais brasileiras produzidas com recurso público deveriam ser disponibilizadas ao público gratuitamente na Internet”.
O relatório da Câmara apontou a necessidade de se discutir a migração da comunicação pública para a perspectiva digital. Entretanto o tema da TV digital e da digitalização do rádio simplesmente não surgiu, mesmo com a programação de desligamento da TV analógica previsto para outubro desde ano.
A plenária final do Fórum incluiu a defesa da liberação da Contribuição para o Fomento da Radiodifusão Pública (CFRP), que deveria financiar a Empresa Brasil de Comunicação (EBC), e que é retida pelas empresas de telecom na justiça. Porém, o debate sobre o papel estratégico da EBC, que corre o risco de ter sua estrutura esvaziada, na articulação da rede pública no Brasil, ficou a dever e precisa ser retomado.
Também ficou ausente do debate a distribuição de 14 milhões de conversores da TV Digital para os beneficiários do programa Bolsa Família. A inclusão, ou não, do middleware Ginga, que visa garantir a interatividade da TV Digital brasileira, está no centro do debate do Gired (grupo de implementação da TV digital terrestre), do novo Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações. Além disso, ainda existe a possibilidade de que estes conversores sejam distribuídos com a tecnologia wi-fi, o que garantiria o acesso à Internet de milhões de pessoas no Brasil, diminuindo a divisão digital atual.
O CGI.br poderia cumprir papel fundamental em traçar diretrizes para estes temas tendo em vista seus princípios de universalidade e diversidade.
Streaming
Tema apenas citado na trilha é o fato de que no Brasil, o streaming ser considerado como execução pública de obra audiovisual, e consequentemente, obrigado a arrecadar direitos autorais junto ao Escritório Central de Arrecadação e Distribuição (ECAD). Curiosamente, no segundo dia do VI Fórum da Internet no Brasil, durante o Seminário “Internet para Outro Mundo Possível”, quando a palestrante Salete Valesan solicitou que fosse reproduzido o vídeo da música The Wall, do Pink Floyd, o streaming do evento teve que ser interrompido (e o conteúdo não se encontra mais disponível no canal do Nic.br no youtube).
Compreendemos que o streaming é diferente do cinema, do rádio e da TV paga e que portanto deve ser alvo de uma política diferente. É um princípio do CGI.br traçar diretrizes para que o “ambiente legal e regulatório preserve a dinâmica da Internet como espaço de colaboração”. Portanto, consideramos como fundamental que a câmara de conteúdos e bens culturais promova esta discussão e faça recomendações para a legislação brasileira com relação à diferença do streaming da execução pública de obra audiovisual.
O tema do streaming foi debatido sob outra perspectiva no segundo grupo, que tratou de direitos autorais. O destaque da relatoria foi “aprofundar a compreensão sobre os modelos de negócios existentes e discutir se streaming resolve ou não a questão dos downloads considerados ilegais, assim como compreender como os serviços de streaming se relacionam com outros players do mercado”.
Acervos Digitais
Por fim, um tema que surgiu de forma muito discreta foi o de acervos digitais. Foi destacado na relatoria final da câmara a necessidade de “identificar meios de preservar a produção de conteúdo nacional”. Entretanto nada foi encaminhado com relação à padronização e interoperabilidade destes acervos com vistas a garantir sua fruição em diferentes plataformas.
Sendo assim, sugere-se à câmara que o tema dos acervos digitais, da produção de conteúdo público, do acesso a bens e conteúdos culturais e um ambiente legal e regulatório próprio para o streaming estejam em pauta nas próximas reuniões.