Sem acesso aos recursos, as pessoas passam fome.
Mais de 700 milhões de pessoas estão subnutridas. Ação global a 16 de outubro
Sergio Ferrari
Longe de enfraquecer, está a ganhar força em quase todo o planeta. A defesa da soberania alimentar está no centro do debate sobre um modelo económico viável para reduzir o flagelo da fome. A Via Campesina (LVC) recorda-o e apela a uma ação global.
A organização internacional que reúne 200 milhões de camponeses de mais de 80 países acaba de lançar a convocatória para a próxima Ação Internacional pela Soberania Alimentar dos Povos contra as Empresas Transnacionais. Esta ação terá lugar no dia 16 de outubro e tem como objetivo uma mobilização o mais ampla, ativa e descentralizada possível, propondo-se igualmente conquistar as redes sociais através da divulgação dos numerosos eventos locais previstos (https://viacampesina.org/es/).
O movimento dos pequenos produtores rurais vê nesta convocatória uma nova oportunidade para ratificar a denúncia do controle dos sistemas alimentares, principalmente nas mãos das transnacionais do agronegócio. Define-as como “uma rede corporativa global que está a intensificar a fome de milhões de pessoas no mundo, bem como a massificação da desnutrição como uma doença crônica das novas gerações”.
A Via Campesina (LVC) considera “inaceitável que cada vez mais pessoas passem fome e que a insegurança alimentar se intensifique e afete um terço da população mundial”. A crise global e os grandes movimentos migratórios que afetam milhões de pessoas ocorrem num contexto de crise climática, alimentar e ambiental que afeta toda a humanidade.
Os seus argumentos baseiam-se em dados de fontes oficiais, como o documento “2013: O Estado da Segurança Alimentar e da Nutrição no Mundo”, publicado por cinco agências da ONU sob a coordenação da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) (https://www.fao.org/3/cc6550es/cc6550es.pdf).
Um quadro chocante
O documento da FAO – produzido em conjunto com a Organização Mundial de Saúde, o Fundo para a Infância, o Programa Alimentar Mundial e o Fundo Internacional para o Desenvolvimento Agrícola – reconhece que, embora a fome no mundo tenha permanecido significativamente inalterada entre 2021 e 2022, continua muito acima dos níveis anteriores à pandemia de Covid-19. Em 2022, afetou cerca de 9,2 por cento da população planetária, contra 7,9 por cento em 2019, a fase pré-pandémica.
As percentagens expressam menos do que os números, que refletem, de forma gritante, a face humana deste flagelo: entre 691 e 783 milhões de pessoas em todo o mundo sofreram de fome em 2022, o que representa mais 122 milhões do que em 2019.
Embora tenham sido feitos alguns progressos na redução da fome na América Latina e em partes da Ásia durante o mesmo período, esta continua a aumentar na Ásia Ocidental, na região das Caraíbas e em toda a África.
Por outro lado, a prevalência da insegurança alimentar manteve-se inalterada pelo segundo ano consecutivo, depois de ter aumentado acentuadamente de 2019 para 2020. Em 2022, cerca de 2,4 bilhões (29,6 por cento da população mundial) estavam em situação de insegurança alimentar. Entre eles, cerca de 900 milhões estavam em situação de insegurança alimentar grave. O drama da insegurança alimentar afeta particularmente as mulheres e as comunidades rurais. Por exemplo, em 2022, 33,3 por cento dos adultos nas zonas rurais foram afetados (mais de 28,8 por cento nas zonas periurbanas e 26,0 por cento nas zonas urbanas). Paradoxalmente, os efeitos mais perversos da falta de alimentos ocorrem nas zonas rurais, onde teoricamente têm origem os géneros alimentícios básicos.
O estudo da ONU conclui que, em 2022, 148 milhões de crianças com menos de cinco anos eram raquíticas devido a dietas insatisfatórias. Entretanto, 45 milhões de crianças sofrem de desperdício e 37 milhões têm excesso de peso. O excesso de peso é mais frequente nas zonas urbanas, enquanto os dois primeiros fenómenos são mais frequentes nas zonas rurais.
Fóruns superestruturais, mas a fome persiste
Tendo em vista a próxima Ação Internacional pela Soberania Alimentar dos Povos contra as Empresas Transnacionais, a Via Campesina argumenta que estamos a viver “um cenário de monopolização generalizada de todos os elos dos sistemas alimentares”. E no seu diagnóstico global salienta que “a nossa produção agrícola, sementes, terras e territórios estão a ser monopolizados; os nossos direitos camponeses ao rendimento e a uma vida digna, ao protesto e à autonomia dos nossos povos estão sendo violados”.
O movimento considera que a atual crise alimentar não tem precedentes, está interligada com a crise climática, as guerras, a corrupção, o controlo dos meios de comunicação social, o racismo institucional e o neofascismo, enquanto os camponeses continuam a ser “criminalizados, deslocados e os nossos meios de subsistência continuam a ser confiscados”.
A ação prevista para 16 de outubro procura também ter impacto nas discussões de um novo Fórum Mundial da Alimentação com representantes dos governos, convocado pela FAO para Roma, de 16 a 20 de outubro. Estes fóruns estão a tornar-se mais comuns e repetitivos, embora sejam raras as resoluções estratégicas positivas. Em janeiro último, realizou-se uma reunião deste tipo em Berlim, Alemanha.
Uma análise dos debates e dos comunicados públicos do fórum de Berlim mostra que, embora o evento tenha reconhecido “a importância crucial de tomar medidas concretas para acelerar o acesso das pessoas a regimes alimentares saudáveis, transformando os sistemas agro-alimentares de modo a torná-los mais resistentes, eficientes, sustentáveis e inclusivos”, as propostas concretas eram, no entanto, fracas ou vagas. Para a FAO, são necessários “mercados abertos, transparentes e livres e o comércio agroalimentar, que são essenciais para resolver os actuais problemas de segurança agroalimentar”. O problema é que, na conceção dominante das Nações Unidas, nem o conceito de soberania alimentar, nem a intervenção cooperativa do Estado como potencial ator regulador, nem a crítica à grande produção transnacional agro-exportadora (agribusiness), nem o papel decisivo da pequena produção rural na luta contra a fome ganham o devido destaque. O mesmo acontece com muitas outras conferências deste género, que continuam a repetir mais do mesmo, mas sem enfrentar as grandes questões estruturais. E dão cada vez mais importância às grandes multinacionais na avaliação das opções de combate à fome.
A Via Campesina expressa mais uma vez a sua preocupação pelo facto de “as grandes empresas continuarem a capturar este espaço (o Fórum Mundial da Alimentação) para os seus próprios interesses”. Por isso, aponta o evento de 16 de outubro como uma grande oportunidade para denunciar as falsas soluções que o poder corporativo, em cumplicidade com muitos governos, está a promover e a forçar para “resolver” estas crises. Convencidos de que tais soluções são meras aparências, a Via Campesina fala com força: “Mais uma vez, dizemos não mais agronegócio! não mais falsas soluções! Sem Soberania Alimentar, não podemos garantir um futuro para a humanidade!
Encontros populares, propostas alternativas
Entre os próximos passos, o movimento camponês confirmou que realizará a sua 8ª Conferência Internacional em Bogotá, Colômbia, na primeira semana de dezembro (https://viacampesina.org/es/viii-conferencia-internacional-de-la-via-campesina-soluciones-claras-para-las-crisis-de-la-humanidad-descargar-el-kit-de-comunicacion/).
Mais de 500 delegados das dez regiões membros debaterão o tema principal: “Perante as crises mundiais, construímos a soberania alimentar para garantir um futuro para a humanidade”.
Esta conferência, tal como as anteriores e desde a sua fundação em Mons, na Bélgica, em 1993, é o espaço mais importante da Via Campesina. As suas outras conferências tiveram lugar no México (1996), na Índia (2000), no Brasil (2004), em Moçambique (2008), na Indonésia (2013) e no País Basco (2017).
Na sua próxima reunião, na Colômbia, para além de fazer o balanço das suas três décadas de trabalho, lançará oficialmente a décima região, que inclui os países árabes e do Norte de África (ARNA). E terá de decidir como fazer avançar a implementação da Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Camponeses e Outras Pessoas que Trabalham em Zonas Rurais (UNDROP), aprovada em 2020.
A proposta é promover a construção de “um quadro comercial global alternativo que ponha fim à voracidade dos acordos de comércio livre e da Organização Mundial do Comércio”. Também define entre os seus desafios a consolidação de um tratado vinculativo contra as transnacionais que proteja os acordos colectivos e individuais de trabalho dos trabalhadores rurais, bem como os direitos à terra, à natureza, à produção e aos serviços básicos das comunidades das zonas afectadas por estas empresas.