Vamos falar da sociedade civil planetária. O conceito de sociedade civil nacional sempre causou a nós, críticos e de esquerda, muitos problemas. Porque é uma sociedade de modelo liberal, que inclui o próprio mercado e os direitos de cidadãos autônomos, vinculados a interesses particulares. Uma sociedade onde os direitos são um falso universalismo. Isso porque nem todos têm direitos, muitos não são cidadãos, ficaram fora do contrato social, lançados no estado da natureza. E também é uma sociedade onde, sobretudo nas cidades coloniais, a sociedade civil não foi constituída. Para os indígenas, os nativos eram constituídos pelos colonos, ou seja, a sociedade civil é sempre o outro, no Estado capitalista. Portanto, por que vamos recorrer neste momento ao conceito de sociedade civil planetária para resolver o problema? Porque não somos capazes de pensar o novo senão a partir do velho, e de conceitos que estão à nossa disposição para serem retrabalhados. Mas também não é só isso.
Penso que em todas as tradições da modernidade há as versões dominantes e as versões dominadas. Há versões suprimidas, conhecimentos suprimidos, marginalizados, que fizeram parte desta modernidade, mas que nunca puderam ter o direito de cidadania. E aí está um conceito de sociedade civil que é aquilo que nos acostumamos a chamar de sociedade civil estranha, a dos oprimidos, dos de baixo, daqueles que estão numa situação de praticamente não-cidadania, mas que lutam efetivamente para adquirir esta cidadania e entrar no contrato social. Essa sociedade é também uma sociedade civil que não inclui o mercado. A sociedade civil do terceiro setor, das organizações solidárias, das organizações não governamentais, dos movimentos sociais. É essa sociedade civil que há de ser o embrião da sociedade civil planetária que queremos construir.
Curiosamente, não temos muitas expectativas neste momento, porque as duas grandes emergências da sociedade civil dos anos 80 trouxeram um mercado, junto com a sociedade civil. Mercado e democracia. Essa é a nossa grande preocupação: a primeira foi, naturalmente, com o neoliberalismo de Thatcher e Reagan, onde a emergência da sociedade civil é o outro lado da destruição do Estado de bem-estar social, dos direitos sociais e econômicos, devolvendo a sociedade civil à lógica do mercado. Como sabemos muito bem pelas privatizações, na seguridade nacional deste país e de outros países do mundo. Tivemos também a emergência nos países do Leste, e aí também a democracia, o capitalismo e o mercado foram considerados parte da sociedade civil. Todos lembram como é que a marca do McDonald’s em Moscou foi, durante muito tempo, símbolo da democracia.
Em face disso, é preciso saber efetivamente o que nos interessa deste conceito e penso que é fundamental trabalhar com as tradições oprimidas, com as tradições suplantadas, de alguma maneira, por estas, dominantes. Em que situação estamos, onde estamos? Estamos numa fase em que muitos países nunca tiveram contrato social e os que tiveram atravessam uma crise no âmbito desse contrato social. Como é que se manifesta a crise? Prevalecem os processos da exclusão, com relação aos processos de inclusão. Isto cria a desestabilização de expectativas: quem está empregado hoje, amanhã pode não estar. Não só as expectativas: é que a experiência de cada um, a discrepância entre cada experiência e as suas expectativas, são agora negativas. A modernidade ocidental, durante muito tempo, criou uma discrepância entre experiências e expectativas. Isto é, na sociedade antiga, quem nascia pobre, morria pobre; quem nascia analfabeto, morria analfabeto. Na sociedade moderna, tornou-se possível que quem nasce pobre, morra rico, e quem nasce analfabeto possa morrer letrado, ou até doutor.
Ora bem, essa discrepância entre expectativas e experiências é conseqüência da sociedade ocidental e do pensamento de esquerda. Hoje estamos num sistema que é exatamente o inverso desse, onde as expectativas eram sempre mais brilhantes que as experiências. Hoje, ao contrário, as experiências tendem a ser, mesmo que medíocres, melhores que as expectativas. Quando se fala em uma reforma da seguridade social, isso é para pior. Quando se fala em reforma da saúde, é para pior. Uma reforma da educação, naturalmente é para pior. Quem perde o emprego, não tem grandes expectativas de ter um emprego melhor. Essa diferença, essa degradação das expectativas, está criando um problema, inclusive para a esquerda, porque exatamente como as expectativas são mais negativas que as experiências, a esquerda se vê muitas vezes na contingência de defender o status quo. E a esquerda nunca gostou de defendê-lo.
Essa situação é complicada, precisamente porque estamos diante de um novo autoritarismo, um autoritarismo que passou do Estado para a própria sociedade civil. Para mim,isso é uma idéia nova que temos que confrontar, uma idéia de fascismo social. Nós vivemos hoje em sociedades politicamente democráticas, e socialmente fascistas. Por isso nossas lutas têm que ser do tipo anti-fascista e temos que procurar o fascismo aonde ele está. Não necessariamente no Estado, pois esse mesmo Estado democrático atua ora de forma democrática, nas chamadas áreas civilizadas da sociedade, ora de forma fascista, nas zonas selvagens da sociedade, contra camponeses sem-terra, contra as mazelas deste mundo. Portanto, o mesmo Estado tem esse duplo comportamento e é precisamente nesta situação que estamos atualmente.
É um Estado que não é mínimo. Deixou de regular a sociedade: ao contrário, o que aconteceu é que o Estado de bem-estar dos cidadãos passou a ser um Estado de bem-estar das empresas. Nunca se deram tantos incentivos às empresas como hoje. Mas a sociedade civil pela qual lutamos é a sociedade dos oprimidos e dos explorados. É do conjunto de suas lutas que os explorados deixam de ser vítimas para passarem a ser protagonistas e sujeitos. Isso é a sociedade civil planetária. Existe uma diferença entre explorados e oprimidos. Os explorados sempre foram uma minoria e as classes dominantes sempre tiveram medo dos explorados, não dos oprimidos. Neste momento, assistimos a uma fusão entre explorados e oprimidos e isso leva ao colapso do contrato social. As lutas das sociedades civis têm que se articular em três escalas: local, nacional e global. Não estamos em condições de privilegiar uma escala em detrimento de outra, pois vamos ser, no futuro, trans-escalares. Temos que saber lutar o global no nacional, o nacional no local, pois o nacional e o global também são locais. Este princípio é fundamental.
O terceiro princípio é o da unidade na diversidade. Como este Forum bem demonstra, vivemos em um mundo que é diversamente uno e diverso. É uno, e esse uno convoca o princípio de igualdade. Estamos em uma situação nova em relação à modernidade, e, apesar da sociedade ser muito desigual, a igualdade não chega. Nós queremos, ao contrário do que aconteceu no passado, salientar a diferença, nós queremos dois princípios, e não um só: o da igualdade e o da diferença. O princípio da igualdade exige a redistribuição por lutas que continuam sendo fundamentais. O princípio da diferença exige conhecimento igualitário das diferenças, onde a modernidade ocidental sempre fraquejou. Essa dupla tem que estar totalmente junta na sociedade civil. E aí surge o grande direito nesta sociedade civil global. O direito a ser iguais, quando a diferença nos inferioriza; o direito a ser diferentes, quando a igualdade nos descaracteriza. Pensem nas nossas lutas, nas nossas casas, na nossa subjetividade e no mundo.
É esse o grande princípio pelo qual temos que lutar. É por isso que essa sociedade tem que ser multicultural. Há dois tipos de multiculturalismo: um reacionário e um progressista. O reacionário fixa as diferenças e mantém as hierarquias entre culturas; o progressista transforma as diferenças, não as canibaliza, mas atenua as diferenças entre elas. É esse multiculturalismo progressista que deve nortear nossas ações. Essas lutas civis das sociedades planetárias ou globais vão ser organizadas em diferentes áreas. Isso é muito importante, como vamos nos organizar. Em primeiro lugar, a sociedade civil é uma sociedade de relações horizontais. Nem hierárquicas, nem as de mercado. Portanto, é preciso encontrar uma forma organizativa plural e tolerante. Porque só juntos é que podemos chegar à diversidade, avançar para criar espaços públicos transnacionais, onde seja possível uma outra noção de direitos. Não os direitos abstratos, que existem para mascarar as desigualdades, mas os direitos organizados e concebidos politicamente que desmascaram as desigualdades, que desmascaram as diferenças inferiorizantes.
Essas lutas que proponho são de seis tipos. A primeira é a democracia participativa, que é fundamental para que possamos nos contrapor à democracia de baixa intensidade, que se tornou compatível com o capitalismo na medida em que perdeu a sua capacidade redistribuitiva – uma democracia sem redistribuição é o sistema político ideal do capitalismo. É o Estado fraco por natureza, ilegítimo. Temos que criar democracias de alta intensidade. Só que uma democracia de alta intensidade não se faz sem democratas de alta intensidade. As organizações não governamentais e os movimentos sociais têm que ser o exemplo dessa democracia da alta intensidade. O segundo ponto refere-se aos sistemas alternativos de produção. Por todo mundo temos visto cooperativas de mulheres e de homens, de camponeses, outros tipos de trocas solidárias estão surgindo por este mundo afora, tornando-se outra luta, outra alternativa que tem que ser parte do patrimônio da sociedade civil global. Em terceiro lugar, há as novas cidadanias, a cidadania pós-nacional, o multiculturalismo. Os direitos não têm que ser os direitos humanos ocidentais, individualistas, mas uma concepção multicultural de direitos humanos. As diferentes culturas falam todas da dignidade humana. Falam em diferentes línguas, mas a dos direitos humanos é uma delas. A cultura islâmica tem uma forma diferente de falar dos direitos humanos, assim como a cultura indígena deste continente. A quarta grande área deve apontar para onde vamos avançar, com os novos conhecimentos a respeito da biodiversidade, por exemplo. A ciência não pode ser, de modo algum, o único conhecimento: temos que lutar por um outro senso comum. Por um conhecimento que começa pela solidariedade. Por que as nossas escolas só querem fazer estudantes competitivos, e não estudantes solidários? A ciência tem que caminhar junto com outras formas de conhecimento, pois as promessas que a ciência nos trouxe nunca foram cumpridas e sente-se a falta de uma confiança epistemológica, de outros conhecimentos alternativos. A biodiversidade vai ser uma grande luta contra a pilhagem do Terceiro Mundo, essa nova forma de imperialismo que é o bio-imperialismo. Uma forma de conhecimento transforma outra em matéria-prima. O conhecimento dos indígenas, ou dos camponeses, é uma matéria-prima. Esta parece ser outra grande área de conflito em que temos que nos organizar. Em quinto lugar, o novo internacionalismo operário não é hoje a nossa única luta. Se fosse há 30 anos, poderia ser. Hoje, é uma luta de cidadania. É claro que os direitos dos trabalhadores não se podem reduzir a direitos humanos. Por que? Porque isso somente seria possível se, no plano internacional, fosse dada aos direitos humanos, aos direitos sociais e aos direitos econômicos a mesma importância que é dada aos direitos cívicos e políticos. O novo internacionalismo operário que está emergindo depois da Guerra Fria, é riquíssimo e tem uma potencialidade enorme. Tem que ser um exercício de cidadania, uma forma de juntar esse internacionalismo operário com todas as outras lutas. Finalmente, há a luta da informação e da comunicação. É outra grande dificuldade que vamos ter no futuro. Uma dificuldade que tem que ser combatida através de formas alternativas de informação e comunicação. A intenção é que essas alternativas sejam conjuntas e articuladas.
Penso que neste Forum é a altura de fazermos uma avaliação. Ainda ontem, um colega me dizia que, no Equador e no Peru, o movimento indígena está junto com o movimento das mulheres e o movimento estudantil. Temos aqui mulheres de um lado, ambientalistas de outro, indígenas de outro etc. Vai haver certamente outro Forum e nele devemos criar uma trama, uma rede que nos dê força. Não podemos continuar, cada um de nós, fechado em seu gueto. Vou enunciar alguns princípios que julgo fundamentais. Primeiro, o princípio da tradução. Temos que aprender a traduzir as diferenças entre nós para criar uma nova inteligibilidade. Da inteligibilidade vamos à proximidade, da proximidade vamos à simplicidade. Em segundo lugar, o princípio da horizontalidade, que é muito difícil, sobretudo nas relações Norte-Sul. Depois, há a ambigüidade do princípio emancipatório. O que é o emancipatório, para cada um de nós, pode ser regulatório ou opressivo para outros. Vejam, por exemplo, o caso dos parâmetros do trabalho, da qualidade de trabalho, dos bonés e camisetas que circulam no mercado mundial. Pode ser uma luta emancipatória, mas os sindicatos de Primeiro Mundo levantam reservas, vêem nisso um novo protecionismo. Ou seja, não basta dizermos que somos pela emancipação social, é preciso testá-la, é preciso ser auto-reflexivo. Porque aquilo que pode parecer emancipatório, também pode ser uma imposição das nossas hierarquias. Estamos sendo autoritários sem querermos ser. Outro princípio fundamental é o da política simbólica, em que temos que ganhar a prioridade de nomear. Nomear é dizer que a flexibilização da relação de trabalho não é flexibilização, é priorização. É dizer que o neoliberalismo não é apenas um modelo econômico, é assassino, mata gente. E é preciso enfatizar esse neoliberalismo excludente, essa insegurança elementar, que são eufemismos para dizer que tem gente morrendo. Temos que ter o direito de nomear isso. Quais são os nossos objetivos? Se socialismo tem um nome hoje, esse nome é a democracia sem fim. Temos que democratizar a sociedade não apenas no plano político, mas a todos os níveis sociais.
Nessas seis grandes lutas que proponho, vai haver também seis formas de democracia, vinculações entre Estado e sociedade civil. Não vai ser nada fácil, pois os nossos objetivos, a prazo, são incompatíveis com o capitalismo. Mas não vamos nos angustiar porque fora de uma situação revolucionária, temos sempre que partir do que é compatível com o capitalismo. Não nos deixemos angustiar com a idéia de que a dominação econômica nunca possa ser democratizada. Ela efetivamente não pode, mas podemos criar formas no sentido de manter a integridade de nossas lutas.
Quais são os nossos princípios? Primeiro, contra a idéia do valor a preço. Frei Betto explicou isso muito bem na sua intervenção: hoje em dia, só tem valor o que tem preço. É preciso combater a prioridade da competitividade em relação à solidariedade e é preciso evitar a idéia de que o mercado é sempre eficiente. Quais são os nossos problemas? Primeiro, a que ponto vai a resistência do nacionalismo? Como construir uma sociedade civil que não entre em choque com um nacionalismo progressista? Por outro lado, como vencer a ambigüidade emancipatória? Outro desafio é a falta de comunidade, somos ainda muito estranhos uns aos outros. Finalmente, devemos distinguir entre objetivos a curto e a longo prazos. A curto prazo, penso que temos que mudar os discursos das instituições monetárias e outras que nos dominam, temos que as substituir por outras. O objetivo a longo prazo é a transformação por uma nova ética, uma nova estética, uma nova sensibilidade de uma nova política. É uma utopia, mas não vos deixai intimidar pela idéia de que somos utópicos. Todas as grandes idéias, antes de se realizarem, foram considerados utópicas.
Reprodução editada da gravação da palestra proferida, sem revisão final do expositor.