Uma questão de classe, nacionalidade ou futebol?

Recentemente circulou pela internete um vídeo sobre caso singular do nosso prosaico futebol. Era uma partida do campeonato holandês e um jogador do Ajax – grande equipe local – machucou-se. O outro time, do interior, em posse da bola, como é de praxe tocou-a para lateral.

Resolvidas as complicações, como sempre na panturrilha, o juiz autorizou o reinício. Contudo, estando no meio do campo, o jogador do Ajax, segundo um espírito de planejamento empreendedor largamente difundido na comunidade européia, retribuiu a delicadeza, dando uma bica jornada nas estrelas, supostamente para o goleiro adversário, que não entendeu a proposta, quando a redondinha adentrou o ângulo superior esquerdo do recinto por ele defendido – feito magnífico do qual nunca foram capazes nem Pelé, nem Maradona, nem outros craques que o tentaram.

Como era de se esperar apesar do chamado “primeiro mundo” (inclusive quem inventou esta asneira ideológica?), a confusão foi geral. O pobre atacante prestes a ser linchado gesticulou sua ausência de culpa e de braços abertos prometeu reparações, reformas e mesmo mudanças na legislação – com as palmas das mãos voltadas para o céu, qual um santo. Assim se fez. O jogo recomeçou e o time malfeitor não se moveu até que o adversário fizesse o gol. E quase erraram.

O caso altamente curioso, pareceria no entanto de desfecho óbvio a qualquer cidadão de bem. No entanto, não sendo o empreendedor brasileiro, nem cidadão (visto que neste país só trabalhador é quem paga impostos) e muito menos de bem (daí a honra de nosso título de terceira maior desigualdade social do mundo), aconteceu que um certo empresário, tomando ciência da singularidade da ocasião, aproveitou-se para enviar um espam (aqueles chatos emeils coletivos) onde tecia com o veneno típico de sua classe de bem sucedidos, mais uma saborosa piada anti-nacional, cujo título era: “Imaginem se fosse no Brasil”. De fato. Imaginem… e imaginem, ainda, se a partida fosse entre banqueiros e especuladores da bolsa de valores… Ô louco!

Cabe frisar que tal prática humorista anti-brasiliana é na verdade um complexo método psicológico tupiniquim, segundo o qual desde há 500 anos as elites dirigentes nos introjetam (não atentar ao termo) que a incapacidade desenvolvimentista nacional está ligada ao tal jeitinho brasileiro – método popular de sobrevivência ao caos, sem a utilização de violência, ou seja, a malandragem daquele que pega ônibus lotado, desce sem pagar e trabalha vendendo o que pode caminhando pelos centros, enquanto a polícia não chega a descer o cacete e persegui-los qual gazelas – ao nível dos melhores documentários de vida animal (cadê a BBC de Londres?). Quem não viu, veja. Em São Paulo segue em cartaz entre a Av. Ipiranga e a Barão de Itapetininga, de segundas, quartas e sextas. Vale a pena conferir.

Voltando ao comentário do nosso hilário empreendedor, ele denota não apenas muita criatividade (visto que há tempos não se ouvia nada do gênero, em matéria de títulos de emeils), mas especialmente demonstra uma pragmática noção de classe, dada que sua opinião é a mais natural e lúcida que se poderia esperar de um empresário bem sucedido, afinal seus dias e noites são justamente passados a arquitetar artimanhas que favoreçam seus negócios. E o que é um bom negócio, senão aquele em que você ganha e o próximo perde?

É claro que hoje já existem as modernas alternativas de surrupio legalizado, também ditas colarinho branco, transferência de prejuízo, repasse ao consumidor, inflação, e outros eufemismos que desafiam a matemática, com ambas as parte tendo lucro. Isso inclusive sempre me intrigou deveras: Onde está o prejuízo? Será que as leis da termodinâmica são falhas? É preciso revisá-las? Porque os juizes, que nunca defenderam nem dissertação de mestrado, são nomeados doutores? E quanto aos árbitros? É justo ofendê-los chamando-os de juízes em uma mera partida de campeonato de pontos corridos, ou somente em finais? Mas estas são outras histórias…

Deixemos de lado tais questionamentos filosóficos que ora me atormentam, mas não devem preocupar o leitor. Quero antes de tudo firmar categoricamente minha postura de apoio incondicional ao sagaz espírito do nosso empreendedor bem-humorado, que não dorme (afinal o sono é para os justos).

Realmente, como poderia alguém exigir de nosso amigo empresário que além de ser engraçado tivesse ainda tempo para ter cultura geral? Seria humanamente impossível, dada sua devoção incansável ao estelionato, como deve ser, à enganação cotidiana formal dos cansativos almoços de negócios, e vista sua fundamental contribuição às artes da demagogia e da sonegação, sem contar os inúmeros e tediosos sábados de churrascos ou filantropia onde se expõem as soluções definitivas para o país e o mundo entre um vinho francês e uma verdade global.

Assim que nosso sagaz empreendedor não tinha como saber portanto que por ironia do destino foi o brasileiríssimo Garrincha quem inaugurou – ao que se tem registro histórico – a gentileza de se tocar a bola para fora quando da lesão de um adversário. Foi num jogo do Botafogo, pelo campeonato carioca, no meio do século passado.

Mas que tal gafe não intimide nosso criativo homem de negócios!
Inclusive jamais um tipo clássico empreendedor poderia sequer supor que um pernas-tortas, analfabeto, pobretão e sem muito planejamento organizacional, pudésse ter um espírito atento e dócil a ponto de tomar uma atitude de tão simples honestidade.

Mesmo porque, segundo o último censo, 99% dos empreendedores bem-sucedidos não conhecem a palavra “honestidade”. Pudera…é uma questão de classe.
E dentre os que conhecem, todos afirmaram categoricamente que não acreditam nela. Diz-se inclusive que um dos entrevistados agregou ainda, sem olhar aos olhos do entrevistador, que a história acabou. Mas não foram divulgadas provas disto.

Por fim, vale lembrar que a alta corte futebolística de Amsterdam desaprovou veementemente a atitude cortês (perdoai os trocadilhos) da equipe do Ajax, o que pôde ser constatado nesta Copa, em jogo tenso e sujo contra Portugal. Ocorre que a seleção portuguesa tocou a bola para fora, para que um holandês fosse atendido, mas ao retomarem a partida, a laranja mecânica ludibriou os irmãos lusitanos em um pragmático, empreendedor, e por que não, belo contra-ataque.

Note o leitor desatento, que não se trata ao fim das contas de uma questão de nacionalidade. Talvez apenas uma questão de classe… E ao vencedor, as batatas.

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