No dia 13 de agosto, Trump anunciou triunfante o papel estadunidense no acordo Israel-Emirados Árabes Unidos. A partir de então, a imprensa brasileira correu a chamar de “acordo histórico” , “Paz dos pragmáticos” ou até mesmo de “normalização de relações” e “suspensão da anexação” , mesmo Trump tendo sido desmentido sobre a suspensão durante a própria coletiva na qual fez o anúncio.
Sabemos que o aparato ideológico sionista vem sendo, no mínimo, arranhado em suas sucessivas derrotas junto à opinião pública que, cada vez com mais possibilidades de se conectar, tem acesso massificado a opiniões, imagens e vídeos que retratam as atrocidades de Israel. Os episódios mais recentes de ataques ao povo palestino – do massacre em Gaza de 2014 à Grande Marcha de Retorno do ano passado – criaram visões mais críticas à ocupação.
A retórica mais elaborada, porém, não apaga nem diminui o papel cúmplice e silenciador que grande parte dos meios de comunicação segue tendo na ocupação e genocídio que ocorrem há mais de 72 anos na Palestina.
Desvio dos holofotes
Um artigo de opinião mais honesto, por assim dizer, no New York Times no dia 14 de agosto , trouxe uma perspectiva mais aprofundada sobre a chamada “normalização”. Ao focar avanços de dois governos que buscam expandir suas influências econômicas, políticas e bélica (como ficou explícito dias após, com uma suposta venda de armas dos EUA para os Emirados Árabes Unidos), a imprensa mundial esquece os palestinos, a busca por alguma paz tão tão distante e até mesmo a agenda ONU-ANP de dois estados. Tudo isso sem grandes esforços de Israel, seja para desmentir fatos, criar suas fanfics sobre homens-bomba ou pressionar qualquer ponto de vista mais crítico com a pecha de “antissionismo é igual a antisemitismo”.
Essa não é só uma especulação, como já se confirma. Mais de dez dias após o acordo, Gaza está sob ataque diário de Israel; além de estar sem luz a maior parte do dia, sem autorização para pesca e sem recebimento de suprimentos que não sejam comida. Palestinos em toda a Cisjordânia veem uma repressão intensificada, mortes e prisões se acelerando. Enquanto isso, às custas do infame acordo, Trump espera ter um respiro eleitoral, Netanyahu, uma trégua nas acusações de corrupção e os Emirados Árabes, novas armas estadunidenses para chamarem de suas.
Trump, tantas vezes questionado e desacreditado na maior parte de suas declarações e políticas, passa a ser, aos olhos da mídia (muitas vezes condicionando a liberdade de quem escreve) e das autoridades cúmplices, um articulador diplomático e ponderado em busca de um acordo de paz no Oriente Médio.
Ao dar eco a uma visão falaciosa e atenuada, para dizer o mínimo, a respeito dos impactos sobre os palestinos – a despeito de quem sejam suas lideranças -, a imprensa brasileira e seus principais veículos de comunicação corroboram com a normalização de uma anexação progressiva e agressiva que vêm expandindo a colonização na Cisjordânia, tendo o exército de Israel como respaldo.
A injustiça normalizada mil vezes torna-se menos hedionda?
Cabe perguntarmos, portanto: como pode uma guerra injusta tornar-se justa aos olhos de quem a reporta, e portanto objetivando também quem recebe a informação?
Façamos um exercício comparativo, de tempo e espaço, que possa ser equivalente em aspectos fundamentais como autodeterminação, ameaça de genocídio populacional e étnico. Qual posição adotar numa delirante (e não impossível) entrega do território indígena ao agronegócio? À completa falta de possibilidade de subsistência e sobrevivência dentro desses mesmos territórios, deliberada a partir do governo Bolsonaro (realidade da Covid-19, por exemplo)?
Podemos dizer que hoje qualquer mídia minimamente comprometida com algum jornalismo – que possa ser chamado assim – jamais questionaria os direitos indígenas de existir no seu território e com sua cultura. E, ainda que seja à base de uma hipocrisia utópica – muitas vezes financiada pelos próprios ruralistas (“agro é pop”) -, não se dignaria a contestar as diversas formas de resistência desse povo.
Por que então negar voz e reclamos de justiça ao povo palestino? Os laços históricos entre colonialismo e mídia parecem falar mais alto. A versão oficial, a mesma que torna indígenas e palestinos intrusos incômodos em sua própria terra, ganha protagonismo e pouco questionamento nesse caso. Contando meias verdades sobre “o conflito”, a criação do Estado de Israel e a limpeza étnica pretendida na Palestina, a comunicação passa a ser uma propaganda ideológica pró- Israel
Com relação aos indígenas brasileiros, foram 500 e tantos anos de ocupação, genocídio, saque e algumas pandemias até o consenso majoritário sobre a validade de sua causa.
No caso palestino, estamos diante de um cenário complexo, uma normalização colonial que atravessou o século XX e avança o XXI, buscando justificativas das mais diversas para se provar útil, necessária e inconteste.
Vejamos os próximos capítulos da História. A justeza da causa palestina, a insistência persistente de sua luta e a contagiante força que inspira lutadores ao redor do mundo – sem aparato bélico ou midiático para isso – pode ser a arma que a colonização israelense não conseguirá combater.
Foto: Bandeiras de Israel e Emirados Árabes Unidos alinhada em uma estrada na cidade de Netanya, na costa israelense, em 16 de agosto de 2020 [Jack Guez/AFP/Getty Images]