Ao refletir sobre o país de onde venho, a Inglaterra, julgo mais importante falar sobre as limitações do que sobre as possibilidades. As derrotas sofridas com o liberalismo, principalmente na era de Margaret Thatcher, devem-se, parcialmente, ao fato de o movimento operário inglês ser um dos mais fortes do mundo. Sua força, no entanto, tinha uma visão paroquial e nacional.
Seattle foi muito importante para nós porque começou a dispersar as nuvens da nossa derrota e a quebrar o feitiço da senhora Thatcher: mostrou que há uma alternativa ao neoliberalismo. O nosso sucesso em Seattle, Washington e Praga levantou questões estratégicas. As perguntas que me parecem as principais são: qual o papel que vemos para a sociedade? Quais são as metas ? Não, metas no sentido das nossas exigências concretas – cancelamento da dívida externa ou salário mínimo digno para todos – mas que tipo de poder queremos para a sociedade, que poder queremos criar?
Em primeiro lugar, vamos ver o tipo de poder que já criamos no âmbito global. O poder de dizer “Não!”, o poder de interromper coisas, o que é muito importante. É um poder que força as pessoas a dizerem: “Esperem um minuto! O que há de errado aqui?”. As pessoas precisam dar nome ao problema. Na Inglaterra, o anticapitalismo já é uma palavra que se começa a ouvir no noticiário. O capitalismo já começa a ser visto como um problema, e não somente como uma solução. Isso já representa um desafio à noção de que não existiam alternativas, pois se há um problema, tem que haver uma alternativa. Portanto, há um poder de desafiar a legitimidade do capitalismo global e suas instituições globais.
Tivemos o poder de criar espaços para pensar em alternativas, começamos a criar confiança para engendrar alternativas. Os efeitos de Seattle têm sido de criar confiança entre os servidores públicos, para começar a dizer “Não!” às privatizações e começar uma alternativa baseada na democratização do setor público. Mas qual é o papel dos movimentos na sociedade civil? Historicamente, o papel dos movimentos sociais no período que vai da década de 20 à de 50, foi o de pressionar o Estado e os partidos políticos. De uma certa maneira, os movimentos se viam nesse período quase como uma maneira de expressar a nossa dor, expressar o problema. Depois a solução seria entregue para os partidos políticos.
Há uma teoria de conhecimento por trás desse pensamento. A idéia tradicional de movimentos sociais previa que o conhecimento existisse somente no topo do Estado, não nos partidos políticos. Hoje já se admite que existe um conhecimento a nível local e a nível nacional. O Estado social-democrata não entendia as necessidades do povo, não tinha um conhecimento prático. Infelizmente, e tragicamente, o neoliberalismo é que tem explorado o espaço dessa noção tradicional do conhecimento. Aquela velha noção de conhecimento, aquela velha forma de socialismo, que presumia que o conhecimento residia apenas na mente dos especialistas. O neoliberalismo tem comemorado o conhecimento prático do empresário, visto enquanto indivíduo. Sabemos que nas empresas o conhecimento é incrivelmente organizado, embora não sendo democrático.
Os movimentos sociais têm buscado uma alternativa com esse conhecimento prático, socializando-o, desafiando a noção de que só funcionaria no plano individual. É possível ver formas de poder econômico no desenvolvimento das cooperativas, no desenvolvimento de alternativas de comércio exterior justo, em formas de economia solidária e sem fins lucrativos. Em termos de poder social, é possível ver a importância do feminismo, um feminismo moderno, não pressionado pelos partidos políticos, tentando impor as necessidades das mulheres na agenda política. O feminismo não esperou por governos ou pela revolução. As mulheres criaram alternativas nas suas vidas cotidianas, assim como em termos de novas instituições públicas – como, por exemplo, as creches. Houve uma série de novas instituições que foram desenvolvidas como resultado da ação das mulheres. Juntas, em torno de seu conhecimento prático, abriram caminhos para alternativas aqui, agora e no futuro.
Com o seu desenvolvimento, vimos os movimentos populares transformarem-se em uma nova fonte de poder político. Esse é um fator da importância de Porto Alegre, uma cidade onde está emergindo, nos últimos 15 anos, um novo modelo de democracia, muito mais profundo, em que as pessoas controlam o Estado. Não delegam, simplesmente, ao Estado, o papel de as representar. Exercem um controle sobre o Estado, nas operações do dia-a-dia, através do orçamento participativo, através dos comitês de bairro, que elegem delegados para negociar um orçamento que atenda às necessidades do povo. Isso é um modelo sobre o qual devemos refletir.
Como poderíamos desenvolver esse tipo de modelo no plano nacional, ou no plano global? Atualmente, o poder que estamos tentando ampliar é poder econômico das cooperativas, de um comércio justo, essas alternativas do feminismo. Mas também vemos surgir um certo movimento como conseqüência da desistência Estado-nação, que abandonou as suas responsabilidades democráticas e sucumbiu ao poder das empresas multinacionais. Os movimentos sociais têm preenchido o vácuo democrático para garantir direitos humanos fundamentais com relação à proteção da natureza, ao controle popular, apenas para mostrar que na prática existe uma alternativa. O desenvolvimento de uma alternativa está se tornando um fator cada vez mais urgente, à medida que enfrentamos a realidade de termos uma recessão no poder mundial que vai acabar afetando todos os outros países.
De certa forma, os movimentos sociais estão na liderança global em torno da democracia. Não há nenhum partido político amigável em âmbito mundial, ou Estado amigável, não existe um poder global democrático. Para garantia desse papel altamente responsável, temos que ter consciência das nossas limitações na medida em que estamos no seu estágio inicial. Talvez o mais importante seja sermos autocríticos e ter auto-consciência. Seria a maneira de reduzirmos as desigualdades da sociedade que buscamos libertar. Apenas para pensar um pouco, vejamos o caso das desigualdades que existem entre os hemisférios Norte e o Sul. Sendo do Norte, estou ouvindo mais as pessoas do Sul, para refletir sobre minhas próprias experiências. As ONG do Norte tendem a assumir a liderança, mas o fazem de uma maneira paternalista. Embora a noção de solidariedade esteja embutida na esquerda do Norte, é muito importante, é fundamental, que haja uma mudança de comportamento, de modo a garantir a auto-confiança e firmeza dos movimentos do hemisfério Sul. O Norte tem muito a aprender com os movimentos do Sul. Descobri isso por minha própria experiência, com a democracia participativa, por exemplo. Aprendi muito mais do que se fossem só experiências do Norte. Por uma série de razões, relacionadas às desigualdades da luta, à forma pela qual se desenvolveram as lutas na América Latina, vêm surgindo novas instituições com as quais os movimentos do Norte têm muito a aprender. A noção de solidariedade precisa evoluir para uma noção de aprendizado e compreensão.
Também é muito importante refletir entre as desigualdades do Leste e do Oeste. Os movimentos do Leste são diferentes e não estão sendo discutidos neste Forum. As pessoas do Leste têm sofrido muito com o FMI e as suas políticas. Sofrem materialmente, em termos da pobreza a que foram levados, e também no sentido de ver esmagadas as cooperativas que existiam. Temos que fazer um esforço para atrair movimentos e organizações do Leste Europeu para o nosso processo mundial.
Outra desigualdade social que tem o perigo de ser refletida em nossos movimentos é a desigualdade de classes. Apesar do internacionalismo estar embutido em sua tradição histórica, o internacionalismo proletário foi enfraquecido. A lição é que os movimentos dos trabalhadores vão além do sindicalismo tradicional (defender o trabalhador no local de trabalho), passando às questões sociais, atingindo a comunidade, envolvendo grupos que não são tão facilmente organizados no local de trabalho, trabalhadores temporários e também as organizações de trabalhadores de âmbito nível internacional.
O terceiro elemento é a desigualdade de gêneros. A esquerda é muito complacente com a luta das mulheres, pelo menos os movimentos sociais. A maioria dos painéis deste Forum só tem uma mulher, ao contrário deste, que só tem um homem. É interessante notar que é sobre a rede civil, e é dominado por mulheres, pois são as mulheres que na verdade estão desenvolvendo os movimentos populares. Temos que prestar mais atenção e ter mais consciência do trabalho das mulheres. Atualmente, existe uma rede muito forte de trabalhadores domésticos pensando em como organizar a forma de trabalho. Essas redes fazem parte das alternativas democráticas, em termos da economia.
Acho que são estas três áreas que temos que pensar criticamente. Finalmente, para resumir, existe um poder emergindo aqui. O poder que neste momento desafia as instituições neoliberais, colocando-as em julgamento. Este encontro marca historicamente o nosso passo adiante para desenvolver as alternativas ao neoliberalismo. Penso que existem duas lições que devemos tirar: a primeira é que se nós queremos a paz, em uma nova forma de democracia, temos que espalhar o espírito de Porto Alegre por outras cidades do Brasil e temos que criar instituições que não apenas possam controlar um Estado, mas, a nível global, quebrar o controle do mercado, as multinacionais. Teremos que construir a nossa sociedade civil global, instituições globais paralelas, encobrindo as instituições já existentes do capitalismo global? Não. Temos que revezar os níveis de poder que significa quebrar estas instituições. Se o formos fazer isto, teremos que ser enormemente auto-conscientes e autocríticos. Teremos que viajar por todo o mundo, teremos que nos manter no chão, não ficarmos voando apenas, temos que ter chão. O conhecimento prático e o poder existem para criar uma alternativa: ter os pés no chão.
Reprodução editada da gravação da palestra proferida, sem revisão final da expositora.