Refletindo sobre o tema, é inevitável a pergunta: “o que é esquerda hoje?”. Lembrei-me da definição que ouvi uma vez de um intelectual (economista, se não me engano), que não é tido como de esquerda, e da qual gostei muito, passando a utilizar. Na definição que ele apresentou, ser de esquerda implica desafiar a ordem e a lei, em nome da justiça. A direita, ao contrário, para manter as leis e a ordem (que ela mesma dita, comprando mandatos parlamentares e jurídicos nas democracias “representativas”), não se importa de cometer injustiças, explorar as pessoas, relegá-las, deseducá-las, mal alimentar, destruir, matar!
Potencializados os efeitos do capitalismo moderno com o neoliberalismo, a valorização do consumo e do individualismo, do “vencer”, tornar-se “celebridade”, insuflados fortemente pela mídia de massa desde o século XX, até entrarmos neste auge da mercantilização da vida. A ampliação desses valores para o ter, em detrimento do ser, faz aumentar também as depressões, drogadições, baixa auto estima, sofrimentos mentais os mais diversos; perspectiva de vida melhor, nenhuma. E há alguma perspectiva de vida? Já há muitos que se perguntam isso, diante da obsessiva destruição do planeta, exploração de tudo e todos, que não cessa mesmo frente aos gritos da natureza e aos gritos de cada vez mais pessoas do bem.
Nossos governos de “esquerda” latino-americanos estão desafiando a ordem em nome da justiça? Nossos governos estão empenhados em modificar as leis para que haja igualdade social e efetiva participação política da sociedade? Em nossos países, e posso falar melhor pelo Brasil (claro), os movimentos sociais vem sendo criminalizados cotidianamente, lideranças fortes são ameaçadas, algumas assassinadas, e a liberdade de expressão não é direito da grande maioria da população, organizada ou não. Quanto mais independentes do governo forem os movimentos sociais, sobretudo os considerados “perigosos”, aqueles cujas reivindicações mexem com estruturas estratégicas, como os latifúndios da terra e os latifúndios midiáticos, mais criminalizados serão.
Aprofundar o democrático popular
Estas lutas não viram praticamente avanço algum nos últimos anos de governo democrático popular. Ao contrário, nas últimas semanas vimos novas mortes de lideranças do povo, o recrudescimento da repressão e criminalização de movimentos sociais em todas as regiões do país. Destaco a região norte, onde pude estar nos dois últimos anos, e ver o quão pouco vale a vida por ali. Seja pela superexploração de extrativistas, agricultores, pescadores, mulheres, seja pela perseguição e ameaças freqüentes às lideranças e assessorias jurídicas dos movimentos com representatividade e profundidade na luta. Quantos já morreram? Quantos assassinos estão impunes?
Os instrumentos da democracia participativa, que poderiam aprofundar a apropriação do público por todos e todas, tem sido utilizados para cooptação de lideranças, assim como o parlamento já faz há muito tempo, desde sempre, acho. Lembremos que a democracia começou na Grécia antiga, já excluindo os escravos (feitos assim pela guerra), os estrangeiros, além das mulheres, restritas ao espaço privado, é claro! Não quero me estender a falar sobre a não participação das mulheres e a não valorização dos seus pontos de vista, pois isso daria outro artigo. Quero apenas resumir alguns princípios que as mulheres defendem hoje, e defenderam desde sempre, valores que estão sendo apropriados e reivindicados pelas novas gerações.
As feministas, gostamos de organizações horizontais, de preferência circulares como a nossa Terra redonda, onde seja mais igual a participação de todas as pessoas em todas as tarefas. Agora que as mulheres fazem parte expressivamente do mercado de trabalho e de consumo (em apenas meio século de ocupação de lugares na vida pública) e começam a ser respeitadas, elas continuam incluindo a alimentação e a arte, os cuidados com o corpo e com o espírito, em sua atuação e seu desenvolvimento político. Nós mulheres, defendemos, desde sempre no correr da História, a paz e a segurança alimentar, os direitos fundamentais de qualquer ser humano, à moradia, à saúde, à educação e à comunicação.
Basta de hipocrisia!
Entretanto, num mundo tão desenvolvido e avançado cientificamente, a maioria da humanidade (os pobres) come veneno industrializado ou “agrotoxicado” (quando come), e gasta seu mirrado e suado salário com a aparência, com drogas para emagrecer ou para esquecer, como o álcool e a cultura de massa. Sobretudo os jovens, os diferentes, todos aqueles que não concordam com o modo de vida imposto pelo capital e o patriarcado.
Um mundo muito melhor, e possível, é com o que sonham os jovens conscientes, que começam a manifestar-se nas grandes metrópoles, alcançando já muitas cidades brasileiras. As manifestações têm sido por liberdades democráticas, por participação nas decisões do país, pelo “direito de pensar” e pelo direito de comunicar seus pensamentos e opiniões. A luta é pela diversidade, pelo direito a existência do diferente. A Marcha da Liberdade em São Paulo, ocorrida há alguns dias, deu destaque a duas reivindicações de legalização, da maconha e do aborto. Por que não se discute amplamente isto? São terrenos onde a hipocrisia, com aparência de “ordem”, do “certo” a ser feito, reina absoluta, enchendo de dinheiro bolsos corruptos.
Ora, os “maconheiros” querem apenas o direito de plantar, sem agrotóxico ou qualquer outra mistura, o seu “chá”. Vi muitas demandas da periferia por isso, defendendo que maconha é “remédio” para os pobres, e eu entendo isso frente ao estresse do vencer e do ter , imposto pelo sistema econômico-político. Concordo, porque a periferia não tem grana, como as madames, os “playboys”, alguns artistas ou esportistas famosos, executivos e quetais, para gastar com suplementos alimentares, anfetaminas, anti-depressivos, boas bebidas e bons cigarros. Isso, sem falar nas roupas da moda, sapatos, celulares, carros e viagens, que fazem as pessoas “valerem” mais.
As mulheres pobres da periferia não têm grana para resolver uma gravidez indesejada em boas clínicas, ou até no exterior, como fazem as filhas da nossa burguesia, ou da classe média que segue seus valores, aspirando ainda um dia chegar lá. E quantas pobres não tem sua vida estagnada por um filho fora de hora, e quantos filhos não desejados, não amados e queridos vão engrossar os índices de violência e exclusão. Da mesma forma, a repressão a manifestações de amor e carinho entre homossexuais, sejam homens ou mulheres, a proibição de adotar e amar crianças que não tem lar, é incompreensível. Ou a discriminação devido a cor da pele, à origem, à religião ou não religião, são intoleráveis para quem deseja uma Terra onde se viva em harmonia e em busca da felicidade.
Por isso, as “Marchas da Liberdade” tem expressado palavras de ordem as mais diversas, e reunido tantos diferentes numa luta comum. Por todo o Brasil, gritam as reivindicações contra o machismo, o racismo, a homofobia e lesbofobia, contra as mudanças do código florestal, em defesa do meio ambiente, da educação e da cultura, pelos referendos democráticos, contra a guerra e o imperialismo, pelo Estado laico, pelo direito à comunicação. Sem ligação com partidos políticos ou grandes estruturas organizativas, há muitos que tem contra essas marchas o argumento de que elas só alcançam os jovens da classe média, bem alimentados e educados. Infelizmente, apenas estes têm noção da coisa pública e de seus direitos democráticos; os jovens da periferia estão oprimidos pela condição de inferioridade e desconhecem direitos. Até quando?