O anúncio da normalização do Marrocos com o Estado de Israel e as declarações de Trump sobre o Sahara Ocidental, aumentaram os holofotes internacionais para a situação do povo saharaui e sua revolta pelo não cumprimento das decisões da ONU, que prometia um referendo para solução do conflito.
Este é o tema tratado pelo diplomata Malainin Lakhal, atualmente embaixador da República Saharaui em Botswana e representante permanente para a Comunidade de Desenvolvimento da África Austral (SADC), nesta entrevista ao Monitor do Oriente Médio.
Ex-secretário-geral do Sindicato dos Jornalistas e Escritores Saharauis por dois mandatos 2005-2013, vítima de desaparecimento forçado por seu ativismo em direitos humanos e ex- servidor da Comissão da União Africana, Malainin é um ativo analista e representante da resistência à ocupação marroquina. E não tem dúvida ao comparar a situação do Sahara Ocidental e da Palestina: há muitos paralelos entre os dois povos e as duas lutas
O Sahara Ocidentral aparece como barganha entre o Marrocos e Israel, na declarações recentes de Donald Trump. Por que a situação do povo saharaui não se resolveu até agora?
O povo saharaui luta pela sua liberdade e independência desde 1973, sob a Frente Polisário (movimento de libertação saharaui) primeiro contra os espanhóis (1973-1975), depois contra uma dupla invasão militar de Marrocos e da Mauritânia (1975-1979) e depois contra Marrocos sozinho (1975 até o momento), que agora ocupa cerca de 2 terços do território.
Havia, supostamente, um plano de paz supervisionado pela ONU em vigor na região desde 1991. A ONU deveria organizar um referendo sobre autodeterminação, conforme acordado pelas duas partes em conflito, Marrocos e Frente Polisário, mas infelizmente Marrocos apoiou principalmente pela França, conseguiu desperdiçar 30 anos de esforços da ONU em vão. A ONU falhou completamente em organizar o referendo, e Marrocos conseguiu colocar obstáculos aos esforços de mediação de todos os Enviados Pessoais, o último dos quais foi o ex-presidente alemão, Horst Kohler, que renunciou em maio de 2019. Desde aquela data nada aconteceu.
O que mudou no último período?
No dia 20 de outubro, um grupo de cerca de 50 representantes da sociedade civil saharaui decidiu manifestar-se contra a persistência da ocupação marroquina e o fracasso da ONU em resolver a questão. O grupo organizou um protesto na região de Guerguarat, onde Marrocos abriu uma brecha no seu muro militar, usando-o como rota de comércio para a Mauritânia e países da África Ocidental. A manifestação durou cerca de três semanas, até que, no dia 13 de novembro, Marrocos decidiu lançar uma operação militar contra estes civis saharauis, expondo-os ao perigo. O movimento de libertação saharaui interveio a tempo, salvou os civis mas, consequentemente, declarou que já não se preocupa com o cessar-fogo estabelecido em 1991, visto que Marrocos acaba de o violar, contra civis. Nem mesmo foi contra alvos militares saharauis.
Desde então, temos uma nova situação no Sahara Ocidental. O exército de libertação saharaui organiza ataques diários a posições militares marroquinas no Sahara Ocidental ocupado. Os civis saharauis nos territórios ocupados estão revoltosos e, consequentemente, são reprimidos pela polícia marroquina. Na diáspora, os saharauis organizam manifestações e atividades para denunciar a ocupação marroquina. A comunidade internacional acaba de desperdiçar uma oportunidade de 30 anos que os saharauis lhes deram de boa vontade pela paz. Infelizmente, a ONU e todos os decisores envolvidos no Conselho de Segurança da ONU falharam especialmente na paz e falharam com os saharauis até agora.
Qual é a situação no Saara Ocidental de acordo com o direito internacional?
O Saara Ocidental é uma colônia. Está na lista da ONU para descolonização desde 1966. No último dia 10 de dezembro, o mesmo dia em que Donald Trump declarou seu vergonhoso apoio à ocupação ilegal marroquina, a 75ª Sessão da Assembleia Geral da ONU aprovou sua última resolução sobre o território como povo colonizado.
A questão também é tratada pelo Conselho de Segurança da ONU como um conflito que ameaça a paz, e que vem sendo discutido todos os anos, às vezes duas vezes por ano, com resoluções após resoluções. Mas são resoluções sem força, sem implementação, e que ultimamente se inclinam cada vez mais para a chamada “Realpolitik”, que significa basicamente resolver um conflito de acordo com alguns “interesses” específicos, mesmo que a solução seja violar o direito internacional.
Qual o impacto do anúncio feito pelos Estados Unidos?
Sua decisão não tem nenhum efeito legal, primeiro porque o Saara Ocidental não lhe pertence ou ao governo dos EUA, segundo porque Marrocos não tem nenhum direito sobre o Saara Ocidental. E é exatamente por isso que muitas vozes se levantaram, inclusive dentro dos Estados Unidos, como James Baker III, muitos senadores e congressistas de ambos os partidos, mas também vozes da União Africana, das Nações Unidas, da União Europeia e de muitos países como Reino Unido, Suécia, Irlanda, África do Sul, Espanha. Mesmo França, que normalmente é a protetora de Marrocos, foi cautelosa e considerou que a solução deveria ser encontrada dentro da ONU.
Por que a situação do povo saharaui é comparada com a do povo palestino?
Existem muitos paralelos entre os dois povos e duas lutas, apesar das pequenas diferenças nos detalhes. Ambos os povos estão ocupados militarmente. Ambos têm territórios ocupados, campos de refugiados e diáspora em todo o mundo. Ambos têm seus muros militares de separação. Marrocos ergueu seu muro militar no Saara Ocidental desde 1982. Ambos os povos sofrem opressão, tortura, prisão ilegal, assassinato, prisões políticas, desaparecidos, exilados, etc.
Israel já teve alguma participação concreta na ocupação do Saara?
As relações marroquino-israelenses remontam ao final dos anos 1950. O rei marroquino anterior, Hassan II, como foi revelado por muitas fontes, tinha relações secretas, mas fortes, com Israel, especialmente com o Mossad. Israel batizou uma das principais ruas de Tel Aviv em homenagem ao rei marroquino. Em termos militares, é sabido que Marrocos obteve a ideia de construir o muro militar dos especialistas militares israelenses e norte-americanos. A relação não é nova, sempre esteve lá. O rei marroquino, Hassan II, permitiu ao Mossad registrar as reuniões secretas entre os líderes árabes em 1965. Dois anos depois, em 1967, os exércitos árabes foram duramente derrotados, exatamente porque Israel tinha todas as informações de que precisava. E este é apenas a ponta do iceberg.
O que muda na região do Norte da África com esses acordos de normalização?
Este acordo é uma verdadeira mina terrestre na região que explodirá na cara de todos os países da região. Acho que o que Trump acabou de fazer é criar uma verdadeira dor de cabeça e um problema para o próximo governo na região. Também acredito que o regime marroquino está cometendo um grande erro, porque pensa que pode impor seu fait accompli colonial no Saara Ocidental com a ajuda de um presidente cessante dos EUA e talvez outros países do Golfo e de Israel. Mas apenas mostrou sua verdadeira face a todos.
Agora, ninguém no mundo tem uma desculpa ou argumento para barrar o povo saharaui ou dizer que podemos encontrar uma solução justa com Marrocos, porque este é um regime que não se preocupa com a justiça, a paz ou o direito internacional. Há dois lados claros no Saara Ocidental: usurpadores e opressores e a resistência popular legítima. Então, faço o convite a todos a que escolham o seu lado.
Como estão a resistência saharaui e a Frente Polisario estão lidando com esta nova situação?
Não paramos por muito tempo diante dessa infeliz ação de um presidente cessante dos Estados Unidos, que deveriam supostamente ser os fiadores do respeito ao direito internacional no Conselho de Segurança da ONU. A posição de Trump foi um grande golpe para o próprio governo dos Estados Unidos e sua capacidade de desempenhar qualquer papel confiável no conflito, inclusive nas relações com a Palestina. Não se pode confiar em alguém tendencioso para fazer parte da tomada de decisão.
Os saharauis são unânimes em continuar a lutar e liderar a legítima resistência armada até que Marrocos e os seus aliados nos reconheçam e devolvam nossos direitos. Nossa liberdade não é negociável, o nosso país não está à venda, e a nossa luta, se for necessário, será dever de gerações de saharauis, mas nunca desistiremos de lutar por nossos direitos.
Foto: Malainin Lakhal, diplomata saharawi