“Você quer ir à África do Sul e as fronteiras estão fechadas? A Copa do Mundo, agora, está em Gaza. Venha prestigiar o torneio que vai de 2 a 15 de maio no Estádio El-Yarmouk e no Estádio da Palestina”, estava escrito no pôster que anunciava a Copa do Mundo de 2010… de Gaza.
Primeiro, escutamos clamores, depois delírios. Começou por volta das 16 horas, numa quarta-feira, 12 de maio.
Eu estava com meu amigo Raed na Biblioteca Pública. Raed estava lendo poesia alemã e eu estava escrevendo sobre o gueto de Gaza. E assim como eu, escutou: “É uma mensagem para o mundo, escutem-nos, pois o mundo está dormindo. Nós queremos acordar o mundo, mas ninguém nos ouve… Estamos tentando de todas as formas”.
A exaltação tomava conta do Estádio El-Yarmouk, na cidade de Gaza, inaugurado em 1959 e restaurado no último verão. Era a última partida antes da grande final da Copa do Mundo de Gaza deste ano. A França-Rafah jogava contra a Rússia-Shejaya. O estádio estava lotado, mas aqui os palestinos não estavam unidos: cada metade torcia por um time.
De repente, nas fileiras da torcida da França-Rafah, no meio de toda a loucura, eu vi um galo.
Um jovem segurava um galo, de verdade, e a bandeira azul, vermelha e branca francesa, animal símbolo do país. Mas esse era um simples galo de Rafah, proveniente do martirizado sul da faixa de Gaza.
Fiz-lhe sinais de que também era francesa. Ele entendeu perfeitamente e o galo também, pois mexeu suas asas. Além de ser a única mulher no estádio, também era a única expectadora do meu país. Por conta disso, de tempo em tempo eu voltava a saudar minha bandeira, o galo e o rapaz, em meu nome e também dos ausentes.
A polícia anti-tumulto segurava cassetetes e alguns rifles para conter o ímpeto dos fãs, mas nós não vimos nenhum golpe. O único da tarde foi desferido pela França-Rafah, que fez 1-0 na Rússia-Shejaya.
No sábado, dia 15, a coisa era de fato muito séria, pois se tratava da final da Copa do Mundo de Gaza. A França-Rafah enfrentava a Jordânia-Khan Yunis. Parecia a própria final da Copa do Mundo, mas aqui o jogo era livre como todos os anteriores do torneio.
A polícia de elite estava presente, assim como a anti-tumulto, que aparentava ter alguns equipamentos vindos do Egito. Na entrada, as bolsas das mulheres eram educadamente revistadas por uma oficial mulher ao lado da ambulância. Dentro, havia mais duas de suas colegas. Todas de preto. Algumas meninas estavam entre os voluntários e, na sala de imprensa, podia-se ver um grupo de cerca de 20 mulheres, palestinas e estrangeiras, com as últimas sem usar a burca.
No mesmo local, estavam presentes o doutor Bassem Naim, ministro da Juventude e do Esporte e também da Saúde; o prefeito de Gaza, Rafiq El-Mekki; membros da Associação Palestina de Futebol e outras personalidades. Também compareceu por um lapso o primeiro-ministro. Coincidentemente, na praia RC onde Ismail Haniyeh ainda vive, as pessoas se lembram que ele era um ótimo jogador de futebol.
No meio da incandescente atmosfera, um torcedor da Jordânia-Khan Yunis escalou um velho eucalipto, bem atrás das arquibancadas, e balançava a bandeira jordaniana. Um repórter da Al-Jazeera conferia o jogo in loco. Patrick McGrann, um dos dois idealizadores do campeonato, foi entrevistado pela Al-Jazeera Internacional. Uma equipe de primeiros socorros, toda de branco, adentrou o gramado para salvar o tornozelo de um dos goleiros. Sentado na grama, um torcedor estava muito nervoso e roía as unhas sem parar. Por quê? “Porque torço pra França!”. E apesar de todos os meus esforços, não pude ver o galo, a bandeira francesa e o jovem torcedor de Rafah.
Ao final, a França-Rafah ganhou da Jordânia-Khan Yunis nos pênaltis, mas ninguém sabia como e de quanto, já que uma explosão de alegria em confronto com outra explosão, de raiva, ocorreu no estádio. O céu se iluminava com os fogos de artifício, para delírio geral, até que a zelosa polícia reprimiu da forma mais estúpida os garotos que soltavam os fogos. E isso levou um tempo, mas finalmente encontrei um jornalista local que sabia o placar, que acabou sendo de 5-4 para a França-Rafah.
O troféu era uma réplica do verdadeiro troféu de campeão do mundo. “Aquele custa milhões de dólares, mas para nós não custa nada. Fizemos com barras de metal retiradas das ruínas de uma casa demolida pela ocupação israelense e a bola foi feita de sulfato de cálcio”, explicou um voluntário.
Então, repentinamente, apareceu na minha frente o garoto de Rafah do galo… mas agora sem a ave, que ele disse ter deixado em casa daquela vez. Portando só a bandeira francesa, mostrou-me como escreveu o nome de seu time no lado de trás da bandeira, pois não queria estragar as cores. De presente, me deu uma faixa azul com a inscrição do nome de seu time em amarelo: “Rafah Youth France”. Eu esqueci de lhe perguntar como estava seu galo após a emocionante jornada na cidade de Gaza e o vitorioso retorno a Rafah três dias antes.
Para a Copa do Mundo de Gaza 2010, os catorze melhores times “profissionais” da Liga Palestina foram escolhidos e outros dois de uma divisão abaixo foram adicionados, totalizando 16 equipes. Para doze deles, foram dados nomes de seleções que estarão presentes na Copa do Mundo da África do Sul. A eles se somaram Palestina, Jordânia, Egito e Turquia. A Itália foi representada pelo Rafah Khadamat Club; a Palestina pelo El-Hillal Gaza City Club; os Estados Unidos pelo El-Maghazi RC, tendo sido batidos pela Sérvia-Zeitun. Os jogos foram realizados em dois estádios da cidade de Gaza: o Estádio da Palestina e o El-Yarmouk.
Vale mencionar que o Escritório Sul-Africano para a Autoridade Nacional Palestina, ignóbil e vergonhosamente, fechou seu escritório na faixa de Gaza após o Hamas ter tomado o controle total da Faixa, em junho de 2007. O escritório de Ramallah continua aberto.
A Copa do Mundo de Gaza teve a intenção de simbolicamente quebrar o sufocante cerco na Faixa de Gaza. “Por estarmos proibidos de cruzar a fronteira, nós convidamos o mundo para a nossa casa”, comentou um jornalista. Os patrocinadores do evento foram a UNDP, Fórum Sharek da Juventude; a gráfica Mashareq; Pepsi, Banco da Palestina, que foi criado na Faixa de Gaza e comemora agora “50 anos de construção”.
A idéia de organizar o mundial de Gaza veio de Ashrah Hamad, 26 anos, engenheiro civil, e Patrick McGrann, 34, cidadão estadunidense há mais de um ano em Gaza. Em novembro passado, começaram a transformar a idéia em realidade.
Há alguns estrangeiros vivendo em Gaza. De acordo com o parecer dado a Ashraf e Patrick pelo Ministério do Interior, 250 deles trabalham para organizações internacionais. Entre esses 250 estrangeiros, 50 jogaram a Copa do Mundo, incluindo sete norte-americanos. Oito italianos jogaram pela Itália-Rafah Khadamat, todos residentes de Gaza, tendo um deles vindo de Jerusalém. Na França-Rafah só havia um francês, um americano e um sérvio. Na Palestina, Jordânia e Egito todos eram palestinos. Fora isso, um grupo de garotas estrangeiras também quis jogar, mas acabaram impedidas de se inscrever pelas autoridades.
Os jogadores palestinos que participaram do torneio representavam todo o espectro político local. Havia membros do Hamas, do Fatah, da Jihad Islâmica, do Front Popular e de outros grupos políticos, além de cidadãos independentes.
A final da Copa do Mundo de Gaza foi em 15 de maio. Naquele mesmo dia, em outra parte da cidade, palestinos celebravam a Nakba, isto é, os 62 anos de calvário que fez grande parte de suas terras se tornaram colônia sionista e uma “luz entre as nações”, tal como proclamado na época.
Pela noite, Patrick me pediu para observar com mais atenção o pôr-do-sol, enquanto nós estávamos sentados numa cafeteria na costa da cidade. Foi magnífico, mas também extremamente triste esse pôr-do-sol… um pôr-do-sol sob cerco e uma Nakba ainda ilimitada.
Porém, desse extraordinário evento que foi a Copa do Mundo de Gaza, várias lições serão aprendidas. Uma delas é que a vitória no torneio não pertence somente ao Rafah Youth Club. Ela pertence a toda a gente de Gaza e também a duas pessoas comuns que mostraram que montanhas podem ser movidas.
As mesmas também vão absorver outros ensinamentos… assim como nós. Fomos testemunhas de um comovente, tocante, pungente e imenso ato de resistência.
Flora Nicoletta é uma jornalista francesa independente que vive em Gaza e atualmente trabalha em seu quarto livro sobre a questão palestina.
Texto publicado originalmente em www.uruknet.info, uma agência de notícias do Oriente Médio, e retirado de www.countercurrents.org.
Traduzido por Gabriel Brito, Correio da Cidadania.