Se alguém chegasse a acreditar no discurso do Presidente Barack Obama deveria pensar que as operações de combate no Iraque terminaram. No entanto, após a tortura haver sido exposta publicamente pela primeira vez com o escândalo de Abu Ghraib, a barbárie nas cadeias iraquianas cresce e cresce, ficando cada vez mais distante de qualquer tipo de escrutínio ou responsabilidade. Depois de prender a dezenas de milhares de iraquianos (em muitos casos sem nenhuma acusação formal) e de manter a muitos deles prisioneiros durante anos sem os julgar, os Estados Unidos entregaram o controle das prisões do Iraque, com seus 10.000 prisioneiros, ao governo iraquiano. Conheçam ao novo chefe, é igual que o anterior.
Tarde na noite de sábado, depois de aterrissar em Londres, fomos à pequena zona residencial de Kilburn para falar com Rabiha al-Qassab, uma refugiada iraquiana que recebeu o direito de asilo em território britânico depois do irmão haver sido executado por Saddam Hussein. Seu marido, de 68 anos de idade, Ramze Shihab Ahmed, foi general do exército iraquiano durante o regime de Saddam, lutou na guerra entre Irã e Iraque e fez parte de uma frustrada tentativa de derrubar ao ditador iraquiano. O casal viveu confortavelmente em Londres por vários anos até setembro do ano 2009.
Nessa data, Ramze Ahmed se informou de que seu filho Omar tinha sido preso em Mosul, Iraque. Ahmed regressou ao Iraque para encontrar ao filho, mas foi preso também.
Durante meses, Rabiha não soube nada a respeito do paradeiro de seu marido. Mas em 28 de março de 2010 toca seu celular. Rabiha conta o sucedido: “Meu celular soou e respondi. Parecia outra pessoa, não reconheci sua voz e perguntei: ‘Quem é?’ Disse que estava muito doente e depois disse: ‘Sou eu, Ramze, Ramze. Ligue para a embaixada.’ Logo após lhe retiram o telefone e terminou a conversa.”
Ramze Ahmed estava preso num cárcere secreto localizado no velho aeroporto de Muthanna em Bagdá. Em um relatório recente da Anistia Internacional intitulado “Nova ordem, os mesmos abusos” descreve a prisão de Muthanna como “uma das mais duras” cadeias do Iraque, palco de múltiplas torturas, sob controle direto do Premiê Iraquiano Nouri a o-Maliki.
Enquanto Rabiha me mostrava fotos de sua família, caiu um pedaço de papel com palavras em inglês e em árabe. Ela me explicou que para poder dizer em inglês o que acontecia com seu marido teve de buscar no dicionário algumas palavras, já que nunca antes tinha utilizado naquele idioma palavras como: “violação”, “pau”, “tortura”. Caíam lágrimas de seus olhos enquanto transmitia o que seu marido lhe tinha relatado: “eles o sodomizaram com um pedaço de pau, foi afogado repetidas vezes com sacos plásticos ao redor de sua cabeça, lhe deram vários choques elétricos.”
“A primeira tortura cometida era pôr sacos em sua cabeça, umas cinqüenta vezes por dia, até perder a consciência e não sentir nada, então lhe dava cargas elétricas deixando-o em estado de choque. Quando acordava, colocavam de novo a sacola de plástico e, outra vez mais faziam o mesmo, repetindo a tortura o tempo todo. Também botavam um pedaço de pau dentro de um plástico ou enrolavam a extremidade de uma arma longa, uma pequena parte do cano, não se tratava de um revólver ou de uma pistola, não era nenhuma arma curta, era como um rifle ou fuzil. Enrolavam sua ponta no plástico e a fechavam. Depois traziam a seu filho e lhe ordenavam que violentasse ao seu pai e vice-versa. Diziam-lhe: `Agora você terá de violentar a teu filho´.”
Não surpreende então, que segundo está detalhado no relatório de Anistia Internacional, o governo do Iraque afirme que Ramze Shihab Ahmed tenha confessado vínculos com a Al-Qaeda no Iraque. Em janeiro de 2010, durante uma conferência de imprensa organizada pelo Ministro de Defesa iraquiano, projetaram vídeos que mostravam a outros nove prisioneiros confessando crimes, entre eles o filho de Ahmed, Omar, que apresentava sinais de haver sofrido espancamento. No vídeo, Omar confessa “ter assassinado a vários cristãos em Mosul e ter detonado uma bomba em uma localidade próxima àquela cidade.”
Malcolm Smart, diretor do programa da Anistia Internacional para o Oriente Médio e o Norte da África me disse em Londres: “[No Iraque] há uma cultura do abuso que tem ficado raízes. É verdade que esta cultura já estava presente durante o tempo de Saddam Hussein, mas o que pretendíamos a partir do ano 2003 era virar a página dessa história, e isto não vem acontecendo. O que sim acontece é a existência de prisões secretas, gente torturada e maltratada que se vê forçada a realizar confissões. Apesar de que nos tribunais são muitos os presos que dizem terem obrigados a assinar falsas confissões, a Justiça não investiga estes fatos e nem luta para erradicá-los. Quem comete tais crimes não sofre conseqüência alguma e os torturadores não são identificados.”
Depois daquela breve e interrompida ligação telefônica que recebeu de seu marido, Rabiha pôs-se em contato com o governo britânico e sua embaixada no Iraque seguiu o rastro de Ahmed até a prisão de o-Rusafa em Bagdá. Habitualmente Ahmed utilizava bengala, mas agora estava em uma cadeira de rodas. Rabiha tem uma foto dele tirada pelo representante do governo britânico.
A Anistia Internacional estima haverem cerca de 30.000 prisioneiros no Iraque, 200 dos quais continuam sob custódia estadunidense. Perguntei a Malcolm Smart da Anistia Internacional a respeito destes últimos prisioneiros e ele me respondeu: “Me disse o exército estadunidense considerar este tema como um assunto iraquiano e que tem entregado aos últimos prisioneiros, a exceção das duas centenas ainda sob sua guarda.” No entanto, enquanto os Estados Unidos continuarem destinando bilhões de dólares para manter sua presença militar no Iraque e a financiar ao governo iraquiano, é claro que o tratamento recebido pelos prisioneiros também é um assunto dos EUA. A Anistia lançou uma campanha de base para promover mais ações e assim assegurar a libertação de Ahmed.
Enquanto isso, Rabiha a o-Qassab, que está isolada e sozinha no norte de Londres, passa o tempo alimentando patos em um parque próximo. Era isso o que seu marido costumava fazer.
Rabiha me disse: “Vou ao parque e dou de comer aos patos. Falo com os patos e lhes digo: ‘Lembram-se do homem que lhes dava de comer? Está preso. Peçam a Deus que o ajude.’ ”
Denis Moynihan colaborou na produção jornalística desta coluna.
© 2010 Amy Goodman
Texto traduzido da versão em castelhano e revisado do original em inglês por Bruno Lima Rocha; originalmente publicado em português em Estratégia & Análise. É livre a reprodução de conteúdo desde que citando a fonte.
Amy Goodman é a âncora de Democracy Now!, um noticiário internacional transmitido diariamente em mais de 550 emissoras de rádio e televisão em inglês e em mais de 250 em espanhol. É co-autora do livro “Os que lutam contra o sistema: Heróis ordinários em tempos extraordinários nos Estados Unidos”, editado por Le Monde Diplomatique Cono Sur.