Os constantes crescimentos económicos em Moçambique traduzem pouca ou nenhuma melhoria na qualidade de vida da população, quando não real decréscimo. Por João Camargo, de Gorongosa, Moçambique
Maputo, 2008: a 5 de Fevereiro pela manhã começava a agitar-se o povo, numa manifestação combinada via SMS contra o aumento de 50% no preço do “chapa”, principal meio de transporte da paupérrima população de Moçambique. A repressão policial à manifestação (que apesar de alegar desconhecimento do protesto, encontrava-se dispersa por toda a cidade), aliada a saques a lojas e mercados, saldou-se em três mortos e cerca de 268 feridos (segundo a Televisão de Moçambique). O governo da Frelimo acabava por ceder à pressão popular e congelava o aumento dos preços. A “normalidade” estava restabelecida.
A 1 de Setembro de 2010 organizava-se, novamente via SMS, um protesto contra subidas em catadupa: do chapa, da água, da electricidade, do cimento, do pão e do arroz. Num dos SMS’s divulgados podia-se ler: “Mocambicano Prepara te no grande dia de greve 01/09/10. revendicamos sobre a subida de precos: de energia, imento, água, arroz, xapa e pão. envia pra outros mocambicanos. BOA N.” (SMS de 31-08-2010 às 19:20)
A resposta multiplica-se e, um ano e meio depois, o descontentamento espalha-se novamente pelas ruas da capital e na vizinha Matola: estradas cortadas, pneus incendiados, viaturas atacadas e destruídas, bombas de gasolina atacadas, assaltos a estabelecimentos comerciais, postes eléctricos derrubados, cânticos de contestação, repressão desmedida pela polícia.
As primeiras declarações públicas vêm do porta-voz da Frelimo, depois José Pacheco, Ministro do Interior e finalmente, já a noite anunciava acalmia, fala Armando Guebuza, Presidente da República. A conclusão destas declarações é sempre a mesma: o povo foi usado, monopolizado, enganado por maus elementos, “aventureiros, desocupados e bandidos” nas “agitações” do dia (manifestação é expressão evitada). A resposta sobre quem terá maquiavelicamente organizado o protesto é ainda desconhecida, mas parece estranho que esta “organização” não tenha mantido o potencial despoletado pela repressão policial com fortes manifestações nos dias seguintes.
No dia 2, os manifestos resumem-se aos bairros de lata periféricos da capital, compreendendo pouco mais que pneus incendiados e palavras de protesto. A polícia garante ter a situação controlada, mas o comércio continua encerrado e não circulam transportes. Há no entanto notícia (em particular nos média estrangeiros) de mais mortos e feridos.
Saldo dos dois primeiros dias de protesto: 10 mortos e 443 feridos (entre os quais se encontram crianças).
Sexta-feira, dia 3, anunciam-se novos focos de “agitação” na cidade do Chimoio, capital da província central de Manica. Na Beira, um grupo de crianças terá erguido barricadas e bloqueado a antiga estrada nacional nº6 na quinta-feira, dia 2. Estará a revolta a espalhar-se? Que esperar dos dias seguintes?
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Moçambique é claramente um dos países mais pobres do Mundo, onde a fome e a pobreza não são relativizáveis segundo diferentes perspectivas, mas uma questão simples: não comer = não sobreviver. O comércio informal, assim como o pequeno roubo, são a base da economia para a maior parte da população, contrastando com elites riquíssimas. A tentativa de formalização de todas as actividades económicas fragiliza a vida das populações, que se vêm privadas de um momento para o outro das únicas actividades que sabem executar, sendo forçadas a entrar num mercado global, onde só podem perder.
Maputo é seguramente a cidade em que há uma maior economia formal (que se salda em salários mínimos de cerca de 2300 meticais – 50 euros; geralmente não cumpridos), pelo que o aparecimento destes protestos na capital não é de estranhar, uma vez que provavelmente outras áreas menos ligadas à economia formal global têm provavelmente uma muito maior resiliência a estas oscilações, que por vezes só marginalmente as afectam.
Desde a morte de Samora Machel e da queda do Muro de Berlim que o país, sob a liderança do seu governo, entrou num processo de ultraliberalização, enquadrado pelas reformas estruturais do Banco Mundial e do FMI, o que promoveu aquilo que o economista moçambicano Luís Castel-Branco designa por Economia Extractiva. Segundo esta definição, o país funciona como uma mina, em que apenas se retiram matérias-primas e lucros, deixando pouca ou nenhuma vantagem para a população.
Apesar de ser apontado por muitas instituições de Bretton-Woods como um exemplo de desenvolvimento, a verdade é que os constantes crescimentos económicos em Moçambique traduzem pouca ou nenhuma melhoria na qualidade de vida da população, quando não real decréscimo. A procura de investimento externo guia as políticas económicas, havendo cada vez maior procura dos ricos recursos naturais do país (que como regra funcionam como uma praga para as populações que os “possuem” em África) e privatização das poucas actividades ainda geridas pelo Governo.
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Como resposta aos manifestos, as autoridades declararam que não cederão a pressões, que a situação é fruto da conjuntura internacional e que a resposta às dificuldades passará sempre por um aumento de produtividade do país, implicando uma maior integração da economia formal. Assim sendo, as manifestações dos últimos dias deixam perguntas no ar: estará o “maravilhoso povo”, como lhe chamava o Presidente, a atingir um ponto de ruptura, ameaçado pela fome e pela miséria absoluta que grassa no país?; que desenvolvimento económico propagandeado será esse, que em nada beneficia o povo?; até quando poder-se-á manter este “desequilibrado equilíbrio”?; quem não se torna agressivo com fome na barriga?. O povo o dirá.
João Camargo
Jornalista
Gorongosa, Moçambique