Nuno Tito: O Fórum Social Mundial (FSM) está em vias de se institucionalizar como movimento político?
Samir Amin: Eu não sei como responder a essa questão. Até porque a ideia de institucionalização política comporta vantagens mas também limites e inconvenientes. O Fórum de Porto Alegre é um grande momento positivo na tomada de consciência e luta, das classes e dos povos vítimas do neoliberalismo. Mas essas classes e povos são muito numerosos em todos os países do mundo, são a grande maioria da gente do nosso planeta. Mas em contraposição, os movimentos que falam em seu nome estão muito divididos e fragmentados. Por razões históricas que não vou abordar. O desafio que se coloca nestas condições é construir uma grande convergência na diversidade. O que não é uma tarefa fácil, até porque muitas dessas diferenças são grandes. Para transgredir as divergências, é necessário evitar qualquer recaida dogmática que ajude a perpétuar esta pulverização e que impeça a construção da unidade.
Concluindo, não penso que o termo institucionalizar esteja na ordem do dia. Mas isso não impede que não possa vir a haver uma institucionalização. Quer dizer, acontecer num momento, a constituição de qualquer “coisa” que ainda não nasceu.
NT: Normalmente há uma tensão permanente entre a democracia e a operacionalidade. O Fórum social não está a tornar-se algo pouco democrático em que os milhares de participantes são espectadores com pouca capacidade de influir no evento?
Amin: Não creio que isso se passe exactamente assim. Não creio que no FSM haja uma organização que decide tudo e depois um conjunto de espectadores que assista. De resto não acredito que se possa pensar em “Os Organizadores”. Existe um Comité Brasileiro – que de aliás faz um excelente trabalho – e um conjunto de movimentos sociais e organizações que contribuem para o FSM. Aqui cabem todos aqueles que se reconhecem na Carta de Princípios do FSM.
NT: Não é uma carta com uma aplicação descriminatória? O Fórum condena organizações ditas “terroristas” mas não é tão claro em relação ao terrorismo de Estado, permitindo a presença de ministros e deputados de governos que o praticam, suportam ou apoiam as agressões de Estados a povos indefesos?
Amin: Neste aspecto sou da sua opinião. Isto parte de todo o discurso político, pós 11 de Setembro, de Bush e infelizmente subscrita por todos os governos do mundo, de que é preciso constituir uma frente mundial contra o terrorismo. Essa é a estratégia de Bush. O que nós temos necessidade é de Porto Alegre: uma frente mundial pela justiça social e pela justiça internacional. No dia em que este movimento seja suficientemente forte não haverá lugar para o terrorismo. O inverso não é verdadeiro. Combater o terrorismo, mas permitir que floresçam a injustiça social e a injustiça internacional não acabará com o terrorismo e permitirá ao inimigo – e eu chamo-o pelo seu nome -, Bush e o capitalismo neoliberal de manobrar e utilizar o tema.
Além disso, não é por ser árabe que eu o penso, os militantes palestinianos que lutam contra o ocupante israelita – têm a seu favor todas as resoluções da Nações Unidas – não são terroristas, pelo contrário travam um combate de libertação nacional.
Os terroristas são determinados governos, como o dos Estados Unidos da América (EUA), que planearam, por exemplo, o assassinato de Allende. Onde estão os juizes para condenar este crime, entre muitos outros? Os povos da América Latina conhecem bem essa realidade.
Os EUA não fazem a guerra contra terrorismo, fazem a guerra contra os povos. Quando eles bombardearam o Panamá, para prender o seu ex-agente Noriega, quem mataram foi o povo da Cidade do Panamá. A guerra do Iraque foi, sobretudo, contra o povo do Iraque. A guerra que fazem no Afeganistão tem como primeira vítima o povo afegão. A guerra ao terrorismo não passa de um pretexto.
Mas eu não quero polemizar em relação à Carta de Princípios. Para mim, ela tem um ponto fundamental: apela à constituição de uma frente contra o neoliberalismo. E isso é uma grande virtude.
NT: No passado, muitos pensaram que atingir um novo mundo passava por fazer a revolução e “tomar o palácio de Inverno”. Conquistado o poder conseguir-se-ia mudar o mundo e mudar a vida. Hoje, por onde passa a afirmação de “um outro mundo é possível”? Está inscrita nas pequenas lutas ou continua a ser imprescindível um grande projecto alternativo?
Amin: Durante muito tempo a visão dominante à esquerda punha a tónica na tomada do poder político, de uma maneira ou de outra, para em seguida transformar a sociedade rapidamente, falava-se da construção do socialismo em poucos anos.
Eu penso que a história prova que os resultados estão muitos distantes das intenções e desejos dos actores principais. E mesmo da visão que tinham sobre essa nova sociedade a construir. Isto deve-nos levar a conceber, de uma maneira relativamente diferente, aquilo que eu chamo, a longa transição do capitalismo mundial para o socialismo mundial, direi mesmo para o comunismo mundial. O longo aqui pode significar muitas dezenas de anos. Nesta longa transição, a acumulação de pequenas mudanças não deve ser desprezada. Mas não se deve perder a grande perspectiva de um projecto de sociedade. E eu não conheço, até agora, nenhum melhor que o socialismo, chamem-lhe o que lhe chamarem.
NT: Há quem acusa o FSM de negar esta perspectiva mais larga e de ter deslizado para a direita. Dissuade-se Fidel e Chavez de vir, mas tem-se cá – segundo a imprensa – o prefeito de Caracas e vai aterrar o primeiro ministro neoliberal da Bélgica…
Amin: Naquilo que tu dizes, há aspectos que necessitam uma precisão. Os ministros presentes e o primeiro ministro belga não foram convidados pelo FSM. Não podem de nenhuma maneira falar em nome desta iniciativa. E esta é uma posição clara assumida pelo Comité Internacional do Fórum de Porto Alegre. Agora, o Brasil é um país democrático que permite a qualquer um apanhar o avião e vir cá.E claro que podem falar na rua ou num qualquer hotel.
Não podemos afirmar que há um deslizar à direita do FSM. Esses senhores auto-convidaram-se. E se o fizeram, isto é um bom sinal, significa que o fórum se tornou de tal modo importante que os políticos tenham o desejo de o utilizar para os seus próprios objectivos.
A segunda questão, há tendências diversas – não falo do Comité Organizador Brasileiro – no seio fórum. Algumas dessas organizações são importantes, confederações sindicais, organizações camponesas,ONGs, etc…, e representam forças e interesses diversos. Mas todos assinaram a Carta de Princípios contra o neoliberalismo.
Eu vejo essa diversidade como parcialmente complementar e conflitual. É preciso saber operar neste quadro.
Tomemos duas dimensões principais. Uma, o grau de radicalidade proposto pelas diferentes organizações e forças. Há algumas que exigem poucas coisas. Por exemplo, a defesa do direito ao trabalho tal qual ele existe neste momento. Ou a preservação do estado social de bem estar? contra a ofensiva do capitalismo selvagem. Outros põem em causa os próprios alicerces do capitalismo.
Há graus diferentes, na contestação daquilo que existe. Tomando o exemplo extremo, temos num lado, aquilo a que eu chamo, capitalismo com caridade (até Bush afirma sentir pena dos pobres), creio que os ministros europeus que vêm situam-se neste campo. Este capitalismo caridoso e” uma manobra do adversário. Mesmo o Banco Mundial afirma lutar contra a pobreza, mas é o sistema deles que cria a pobreza. É a política desses senhores que é a causadora da injustiça. Portanto, este tipo de discurso não é aceitável. É a posição de homens, como Soros, que afirmam que é necessário criar regras para salvar o capitalismo.
Importa dizer que esta gente está do outro lado da fronteira. Eles, no fundo, são de Davos dos milionários. Contudo não podemos confundi-los com as pessoas que pedem regulações mínimas , mas que estão no campo anti-neoliberal, porque pensam que a relação de forças não permite neste momento ir mais além.
NT: Pensa que a Taxa Tobin é um exemplo de regulação mínima?
Amin: É uma regulação pequena, mas que me parece muito positiva, porque pode provocar a luta por regulações mais severas, em relação ao capital.
Podemos ter, sobre tudo isto, tudo isto opiniões diferentes mas temos que aceitar a discussão e a variedade de opiniões, tendo, claro, cuidado com as tentativas de recuperação do movimento, por parte do capital.
No outro extremo, temos aqueles que não conseguem sair de um certo dogmatismo. Repetem sem cessar os princípios generosos da visão da sociedade que querem: desejam o comunismo, o anarquismo, etc. Simplesmente é preciso dizer-lhes que têm o direito de ter os seus objectivos, mas é preciso que definam que para fazer esta caminhada, com quem é que eles estão dispostos a empreendê-la e com quem recusam faze-la. É preciso que o assumam.
A radicalidade é uma primeira dimensão do problema. A outra, é o anti-imperialismo. O sistema mundial que existe é sinónimo de imperialismo. Não é uma mundialização que dê as mesmas hipóteses a todo o mundo. Eu chamo-lhe um “Apartheid Global “.
NT: Fala de imperialismo e não de “Império”?
Amin: Falo de imperialismo, aliás o livro de Toni Negri que defende a ideia da existência de um “Império” não me agradou.
Eu penso que vivemos num Apartheid mundial. É uma mundialização imperialista. Claro que esta fase do imperialismo tem características diferentes, tudo evolui, inclusive o capitalismo.
Não assistimos à repetição do imperialismo mercantilista do século XVII, não é, tão pouco, a repetição da colonização do século XIX e assim por diante. Estamos perante uma nova etapa do capitalismo.
Vivemos a dominação de uma tríade. É um imperialismo que junta o capital da América do Norte (EUA e Canadá), da Europa , sobretudo a União Europeia, e o Japão. É um imperialismo colectivo. E essa entidade colectiva que recomeçou uma guerra global contra os povos do sul. E não foi a partir do 11 de Setembro.
É uma guerra começada desde 1990, a guerra do golfo, a Bósnia, Kosovo, Macedónia e a guerra do Afeganistão – que eu chamo guerra da Ásia Central, porque o seu objectivo não se confina ao Afeganistão, antes a todas as reservas petrolíferas da zona.
NT: Estamos perante uma guerra sem fim, um combate sem paz, porque é uma guerra com pretextos sucessivos, bem orquestrados: o terrorismo, a negação dos direitos de um determinado povo, os valores universais, etc?
Amin: A habilidade do imperialismo foi a escolha, entre todos os indivíduos ignóbeis que o sistema cria, daqueles inimigos que permitam legitimar o seu ataque e a sua estratégia.
É essa a característica nova do imperialismo. É, portanto, fundamental ganhar a consciência do caracter imperialista do sistema. Mas todos os movimentos do mundo não partem da mesma situação. E é compreensível que trabalhadores respeitáveis que se batem pelo direito ao trabalho e à segurança social não tenham uma consciência aguda sobre o ataque contra os povos do sul.
Não considero estas diferenças inultrapassáveis. É preciso construir a convergência no respeito da diversidade.
[Artigo/entrevista tirado do sitio web de información internacional ‘II Ciranda’,
30 de xaneiro de 2002]