As aplicações do software Pegasus na espionagem e crimes políticos têm afundado ainda mais a imagem de Israel como propagador de vigilância e assalto a movimentos, indivíduos, instituições e governos pelo mundo.
Pensar que nada tem impedido que funcionários de gente poderosa estejam em algum lugar escutando conversas e analisando mensagens jamais autorizadas, é perder qualquer ilusão de privacidade nas relações atuais.
É certo que as coisas já estavam banalizadas dentro de Israel, com o Haaretz tendo divulgado no ano passado que o software espião já havia sido vendido para a Arábia Saudita, Emirados Árabes, Omã e Bahrein, para monitoramento de dissidentes. Mas o que era sabido, sem material concreto para cercar o crime, virou escândalo com as revelações de 17 organizações de mídia este mês, sobre a proporção do uso perverso do spyware desenvolvido pela NSO, comprado por pelo menos uma dezena de governos.
Na reação em cadeia, o Estado que usa e acoberta a espionagem ilegal também acoberta os crimes dela decorrentes, falseando informações, que geralmente o escondem como perpetrador principal. O caso do jornalista saudi-americano Kashoggi é um exemplo. Seus passos foram monitorados dos EUA à Turquia, para ser morto em um crime de Estado na embaixada saudita, onde o desafeto do príncipe e crítico de seu governo buscava um documento para se casar. Mas antes da mão que mata está a do fornecedor das tecnologias que expõem as vítimas escolhidas às atrocidades. Em se tratando de espionagem, nada é apenas questão de uma relação de compra e venda. Como explicou o israelense Haaretz, a NSO não vendeu seu spyware ao Catar porque a esse país Israel não permitiu.
Em um esforço improvável de pausar a espionagem ilegal até que novos acordos mundiais sejam feitos, a Anistia Internacional pediu no último sábado (25) uma moratória no comércio e emprego dos dispositivos de vigilância e a criação urgente de um marco regulatório que respeite os direitos humanos. Até lá, a organização pede que sejam proibidas a venda, exportação, transferência e uso dessas tecnologias. O problema número um é que os tratados e acordos internacionais, no que se refere à Israel, são proclamados mas nunca aplicados, ou não teríamos a Palestina progressivamente devorada pelo Estado ocupante. O problema dois é que o dispositivo Pégasus e outros similares da mesma NSO já estão espalhados entre os clientes da empresa israelense pelo mundo, sem que possamos saber quantos aparelhos, neste momento, estão sendo xeretados por curiosos, embora a empresa tenha como saber para quem os vendeu. Supondo que seja possível rastrear, localizar e punir a prática criminosa, chegamos ao mais assustador: imaginar que proteção estatal à venda do programa espião chegue ao ponto de criminosos internacionais condenados nos países correrem para Israel para fugir da caçada da Interpol.
Não há o que explique a resistência de Israel em extraditar ao México o ex-diretor da Agência de Investigação Criminal do Governo de Enrique Peña Nieto (2012-2018) Tomás Zerón, responsável por acobertar o crime contra os 43 normalistas Ayotzinapa de 2014.
Desculpas frágeis, como a de que seria uma punição diplomática ao México por ter votado em favor da Palestina na ONU, não fazem sentido frente ao histórico de posições na ONU – que não produzem efeito prático devido ao controle do Conselho de Segurança da organização internacional pelos Estados Unidos – e especialmente por envolver o direito mexicano de finalmente esclarecer e punir um crime hediondo até hoje violenta a memória nacional.
Para lembrar o caso: na noite de 26 de setembro de 2014, estudantes de uma escola na zona rural da cidade Ayotzinapa, que preparavam a tomada de ônibus para viajarem à Iguala onde participariam de um protesto contra as autoridades da região, foram atacados e sequestrados e 43 desapareceram. Apenas fragmentos de três corpos seriam localizados posteriormente e identificados. A explicação oficial, baseada em levantamentos e depoimentos que teriam sido colhidos à época é de que os meninos teriam sido detidos por policiais municipais à mando do prefeito e executados por um grupo criminoso.
Não foi só o México, mas o mundo todo que se horrorizou com o martírio coletivo inexplicável dos estudantes. Mais tarde, novas revelações apontaram para o envolvimento do Exército e o uso da tortura para induzir os depoimentos que sustentaram a versão do órgão dirigido por Zerón, além de mentiras sobre local em que as vítimas teriam sido mortas e seus corpos incinerados e alegações de que os restos teriam sido despejados no rio. Isso impediu, durante muito tempo, que outros locais fosse investigados, até que restos mortais do terceiro jovem hoje identificados fossem encontrados. Na verdade, agentes das três esferas de governo, municipal, estadual e federal, participaram da caça, execução e sumiço dos corpos dos jovens, cujos movimentos em vida foram monitorados pela repressão em Ayotzinapa, permitindo a emboscada.
No ano passado, procurado pela Interpol, com o nome apontado como torturador de testemunhas, e mal uso de dinheiro público, Zerón fugiu para os Estados Unidos e, de lá, ganhou proteção de Israel, onde está atualmente. Mas por que mereceu essa acolhida?
A situação do ex-diretor da polícia federal mexicano, que já estava na mira da Justiça, se complicou quando veio à tona seu envolvimento direto na compra milionária do Pégasus e de um intenso comércio com a fabriante israelense. Conforme destaca o jornalista Sergio Ferrari, em artigo sobre as revelações escandalosas sobre o Pégasus, o México é o país mais afetado pelo uso do spyware, com nada menos do que 15 mil números de telefones daquele país, entre os 50 mil aparelhos monitorados. “Pertencem, entre outros, a defensores dos direitos humanos, vários parentes dos 43 estudantes de Ayotzinapa, a pesquisadores da Comissão Interamericana de Direitos Humanos e a cerca de 25 jornalistas”, lembra Ferrari.
Reportagem divulgada pela revista mexicana Proceso afirma que Zerón viajou em 2020 para Israel, em plena pandemia de covid-19, para fugir das acusações de desvio de 55 milhões de dólares de fundos públicos. Entregues pelo chefe da Unidade de Inteligência Financeira do México, Santiago Nieto, na semana passada, o governo israelense tem em mãos todos os contratos de mais de 32 milhões de dólares assinados por Zerón durante o governo de Peña Nieto, para fins de espionagem.
Uma “fonte” de Israel disse ao New York Times que Israel não tem intenção de extraditar o velho cliente da NSO, embora outras “fontes” de lá digam que ninguém disse isso, nem o contrário. Na semana passada, em entrevista coletiva matinal, o presidente mexicano, Lopez Obrador, que reabriu o caso dos estudantes de Ayotzinapa, afirmou não ter obtido resposta de Israel para o pedido de extradição. Mas disse também acreditar que o criminoso será devolvido, por uma questão de justiça. “Ojalá, disse Obrador, esse governo (de Israel) atue com respeito aos direitos humanos, pois pedimos a extradição, entre outras coisas, por casos de tortura.”
Ironias à parte, a devolução de Zerón poderia ajudar a desvendar não apenas o martírio dos 43 jovens mexicanos mas também as ramificações regionais da grande indústria da espionagem e destruição dos direitos humanos que a Anistia Internacional quer pausar com seu apelo por moratória.
Marcha cobra respostas para o desaparecimento dos 43 estudantes em 26 de dezembro de 2014 [Maurício Garcia/Flick]