Tudo começou numa sexta-feira 13. Não sei se já naquela época era dia de azar, mas aquele 13 de novembro de 1002 foi um dia difícil para os vikings, ou como eram chamados na Inglaterra, para os dinamarqueses. Nessa data, conhecida como dia do massacre de São Brício, o rei inglês decretou a morte dos dinamarqueses que viviam em território inglês. A situação era conturbada e havia conflitos constantes entre dinamarqueses e ingleses. Seja qual for a interpretação e os resultados imediatos do massacre, ele acabou tendo consequências inesperadas no século 21.
Os vikings e suas histórias têm uma legião de fãs. Há centenas de livros, filmes e séries que contam epopeias e aventuras desses povos que viviam originalmente na Escandinávia e se dedicavam à exploração e à colonização de outras regiões da Europa, e até mesmo fora desse continente, entre o final do século 8 e o século 11.
Apesar de ninguém saber o certo de onde veio a palavra viking, é certo que ela não era usada pelos vikings, que eram tratados por diversos nomes, por onde andavam. Os povos vikings compartilhavam uma língua, uma organização política e muitas outras manifestações culturais. Sob alguns aspectos, eles eram únicos e diferentes de seus vizinhos. Agora, sabemos que eles compartilhavam outra coisa, única e diferente de seus vizinhos: uma linhagem específica, recém-descoberta, do vírus da varíola.
As doenças deixaram grandes marcas na história da humanidade e a pesquisa das epidemias que assolaram a nossa espécie ajuda a contar a nossa história. É possível, por exemplo, entender diversas migrações humanas, que sucederam epidemias, ou acompanhar o declínio de sociedades por causa de surtos de doenças. Aliás, com as novas técnicas da genômica, tem sido possível redesenhar as histórias das relações entre os patógenos e a nossa espécie. Pesquisas recentes mostram que a varíola já estava presente, infectando a humanidade, antes do que imaginávamos. Alguns pesquisadores acreditam que, já havia varíola há 3 mil anos e a doença poderia ter sido a responsável pela morte do faraó Ramsés V, no século 12 a.C.
No século 20, ou melhor dizendo, nos 78 primeiros anos do século passado, a varíola matou 300 milhões de pessoas. A última vítima dessa que foi umas das mais terríveis pragas que atingiram a humanidade morreu em 1978. As pesquisas sobre o DNA do vírus da varíola permitem que se entenda onde ele se originou e como se espalhou. Integrando esses resultados com análises arqueológicas e históricas, é possível agregar precisão às datas das migrações humanas.
Um estudo que começou examinando a diáspora viking no final do primeiro milênio e acabou analisando 1.867 indivíduos que viveram na Europa, na Ásia e nas Américas, entre 32 mil e 150 anos atrás, descobriu em 26 indivíduos linhagens parecidas com as da varíola moderna. Como em 2008, numa escavação no Saint John College em Oxford, foram encontrados cerca de 35 esqueletos de homens, identificados como vikings e provavelmente mortos no massacre de São Brício, alguns desses ossos também foram usados na pesquisa.
De quatro indivíduos, vikings de onde se extraiu o DNA do vírus da varíola que pôde ser completamente refeito, veio a surpresa: a análise mostrou uma linhagem distinta do vírus, desconhecida até o presente. Não se sabe se essa linhagem era mais ou menos virulenta, mas sabe-se o que o ancestral comum à ela e à linhagem moderna data de cerca de 1,7 mil anos atrás. Curiosamente, como o declínio dos vikings se deu diante da expansão do cristianismo na região e da reorganização política da Escandinávia, seria possível imaginar que essa linhagem teria persistido, mas sumiu, sem deixar traços. Ou seja, a linhagem do vírus da varíola dos vikings desapareceu, não se sabe como, nem quando, mas essa história bem que pode dar um excelente enredo para uma nova série.
A pandemia e a nossa história
Assim como uma linhagem do vírus da varíola pode trazer indícios sobre a trajetória dos antigos habitantes da Escandinávia, qual será a história que a pandemia nossa de cada dia vai contar sobre a humanidade?
Em um mundo como o que vivemos, onde é possível acompanhar a migração e a expansão de um novo vírus sincronicamente, como no caso do coronavírus, as doenças têm consequências diferentes. Um evidente reflexo dessa pandemia é o avanço da pesquisa imunológica e de formas de deter o coronavírus. Elas vão desde estudos com os anticorpos das lhamas até a criação de polímeros que impedirão fisicamente o coronavírus de infectar as células.
Há, porém, todo um universo de mudanças que a pandemia parecia que ia trazer, mas que ou simplesmente não trará ou que será apropriado pelo sistema vigente, de forma que tudo mude para ficar exatamente igual ao que era antes da pandemia. Será que a história que essa pandemia vai contar sobre nós é que tivemos a oportunidade de parar, pensar e mudar, mas desperdiçamos essa chance?
Conservar é mais barato
Evidências se acumulam mostrando que é importante preservar o meio ambiente para controlar a emergência de novas zoonoses e que essa conservação sairia mais barata do que o que se tem gastado com o combate à covid-19. Por exemplo, um estudo recente, publicado na Science, mostrou que o custo para preservar o ambiente no planeta estaria em torno de 22 bilhões de dólares, enquanto os valores empenhados no combate à covid-19 chegam a 2,6 trilhões de dólares, além de que milhares de pessoas perderam a vida. Não duvido que diante dessa aritmética, os donos do mundo achem que conservar algumas áreas do planeta seja fundamental e invistam nisso.
Será, porém, isso o suficiente para promover as grandes mudanças que alguns de nós achamos que a pandemia traria? Um exemplo é o movimento que vem sendo feito por investidores, empresas e bancos para a conservação da Amazônia. Não há dúvida de que parece uma iniciativa nova, talvez pautada também pelo descaso absurdo do governo federal com a floresta e pelo impacto do desmatamento descontrolado sobre o agronegócio brasileiro, e necessária. O risco, porém, é que ela não seja tão nova assim. A verdadeira mudança seria perceber a floresta não como um coletivo de árvores a ser mantido de pé e se possível como fonte algum lucro, mas como um conjunto de relações, que envolvem os povos que ali vivem, e apostar em um encontro de modos de vida e saberes. Criar novos mundos.
A transformação real seria rever nossas formas de estar no mundo. Revisitar as escolhas que fizemos como sociedade e dizer, coletiva e solidariamente, “não” para o retorno ao mundo nosso de cada dia, sem mudanças significativas. Para isso, não basta que empresas e governos incorporem aos seus discursos a conservação ambiental, como já aconteceu antes, ou com as novas roupagens, a bioeconomia ou a biodiplomacia. Toneladas de papel e tempo precioso foram gastos para transformar o modelo de conservação em alguma coisa que incluísse os povos indígenas e as comunidades locais. Agora, novas decisões e novas narrativas se delineiam, a conservação de áreas naturais assume nova importância diante da pandemia. E esses povos, nessa nova configuração onde ficam? No lugar de sempre, nas bordas do mundo, onde não ameaçam a hegemonia do sistema? Onde não conseguem mostrar que há outras formas de estar no mundo? Ou suas subjetividades também serão alvo da voracidade do sistema e serão apropriadas e pasteurizadas?
Como já disse em outras ocasiões, o presente é uma máquina de fazer futuros. Não sabemos, e nesse momento menos ainda do que sempre, como será o futuro da humanidade. Que histórias a pandemia nossa de cada dia contará? Será que vai dar pelo menos um bom enredo para uma nova série? Ou teremos, como parece, apenas mais do mesmo até a próxima catástrofe?
Nurit Bensusan é assessora do ISA e especialista em biodiversidade